Capa do filme. |
O primeiro filme francês que eu tive o prazer de assistir (e um dos primeiros "filmes de arte" que vi), essa adaptação cinematográfica do livro homônimo de Georges Bernanos, vencedor da Palma de Ouro, é uma das obras mas simbólicas que retratam temas como espiritualidade e mergulham na profundidade de suas nuances.
Diferentemente do resto da cinematografia do Pialat, muito mais escrachada e crua, esse filme é pautado por uma linguagem um tanto mais romanesca (entenda por romantismo a acepção da palavra em sua origem, não a medíocre compreensão contemporânea que o termo acabou ganhando), muito por conta dos diálogos ásperos e, por vezes, filosóficos, que acometem os personagens da trama, isso sem contar o belíssimo jogo de luzes e sombras que o filme apresenta.
Mas como Pialat, um cineasta que sempre buscou retratar da forma mais fria os dilemas da existência humana e sua realidade melancólica, pôde fazer um filme de cunho profundo e, em muitos momentos, largando de mão a imanência que sempre imperou em seu tato cinematográfico? Simples, ele não largou. Pelo menos, não integralmente.
É óbvio que a acuidade visual com o mise-en-scène e os traços mais suaves adotados por Pialat nesse filme diferem daquilo que o caracterizou, mas a essência daquilo que ele teve como característica permanece. É bastante comum pensarmos que a abordagem da história gire, simplesmente, em torno dos problemas metafísicos que o Padre Donissan (Gérard Depardieu) tem com relação ao seu posto de pároco e os dilemas religiosos que ele sofre, sendo tentado por "Satã". Tudo isso traduziria uma desconexão radical do jeito Pialat de ser, mas basta que se olhe atentamente à trama paralela de Mouchette (Sandrine Bonnaire) e se compreenderá o fator propulsor da trama: o desespero.
Ambos, Donissan e Mouchette, tem em suas tramas uma sensação de agonia perante aquilo que lhes cercam, seja com relação aos aspectos religiosos que transitam por entre a introspecção filosófica do padre ou a agonia existencial da moça resultante de suas relações amorosas mal resolvidas. Embora de características de personalidade extremamente distintas, que fica evidente na cena em que os dois se encontram, a jornada vivida por ambos é uma idealização trágica de existências atormentadas, completamente sem horizontes. Mouchette chega, até, em um momento do diálogo vivenciado pelos dois, a proferir que "Deus é uma piada. Deus não significa nada."
Padre Donissan, peregrinando. |
Já o "Satã" do filme é uma figura emblemática. Ainda que representada por uma figura humana, sua condição narrativa é muito mais ampla que a simples teatralidade de algo puramente estético e físico. Satã, aqui, ganha uma conotação investigativa, onde a busca por uma identidade é tratada como efeito resultante de uma força gerada por este primeiro. As camadas interpretativas dos personagem explicitam a mensagem, quando são, paulatinamente, levados por esse processo de perscrutação e corroídos pelo "sol de Satã".
A intenção que vejo em Sob o Sol de Satã é retratar - ainda que de forma intencionalmente vaga, o que acaba deixando um certo ar de mistério no ar - uma certa imprevisibilidade comportamental de nós, humanos, frente a ameaça de inexistência de um significado maior, seja ele de caráter metafísico ou não. A metafísica e o empirismo se coadunam em um sincretismo fantástico, de modo a retratar vidas destroçadas pela religião e pelo mundo. É uma demonstração de como pessoas podem sucumbir perante a perda de sua essência, constituída com tamanho afinco e acuidade. Faz-nos perceber como, por mais fortes que sejamos, podemos nos deixar consumir por um "Satã".
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