sábado, 29 de junho de 2019

Dedo de Prosa #20: Democracia em Vertigem (2019)

(ou de como a paralaxe cognitiva deixa a lógica vertiginosa).

"Todos nós seremos julgados pela História." - Dilma Rousseff

Assistir este "documentário" foi uma experiência, devo admitir. Para além das obviedades, ou seja, o fato de ser claramente um arquivo político panfletário repleto de imprecisões, mas que, tecnicamente, é muito bem produzido, a película de Petra Costa me suscitou intensas reflexões acerca de algumas questões, as quais resolvi externar neste ensaio. Neste sentido, meu raciocínio girará em torno de cinco pontos centrais: 1º) a questão narrativística; 2º) a questão retórica; 3º) a formação do imaginário; 4º) o fenômeno da paralaxe cognitiva e 5º) a construção do saber histórico.

Em primeiro lugar, se apresenta a questão da narrativa. O debate relacionado ao conceito de narrativa na ciência histórica tornou-se, em especial nas últimas décadas, questão latente nos debates acerca do aspecto teórico e metodológico do saber histórico, ainda mais após as contribuições legadas por Hayden White ao debate. Não cabe aqui, contudo, dar cabo da discussão, mas apenas trazer à baila alguns pontos de desacordo que foram postulados posteriormente aos textos de White, colocando em xeque tal proposta e apontando os limites e perigos da narrativização excedente da ciência histórica.

Em segundo lugar, temos a questão retórica, sob a qual a narrativa torna-se elemento central no processo de formação do devir histórico. Um discurso, segundo a leitura de Olavo de Carvalho de Aristóteles, forma-se a partir da interlocução de quatro etapas, sendo estas: a poética, a retórica, a dialética e a lógica. Tendo isto em consideração, a proposta de formação de uma narrativa (ou discurso) se insere nesse contexto, em que uma determinada obra documental (no caso em questão, de cunho áudio-visual) se orienta a partir do perspectivismo direcionado a partir da legitimação de um olhar determinado do processo histórico.

Em terceiro lugar, se dá o processo de formação do imaginário, que está aliado aos dois fatores anteriores, à medida que é a ação da narrativa, marcadamente estimulada por um aspecto sensorial intuitivo e, portanto, poético, se interrelaciona com a retórica, conduzindo a legitimação de uma tal perspectiva, despiciendas as especificidades intrínsecas de coerência interna dos períodos retratados. Nesse sentido, o imaginário em torno de um momento histórico se sedimenta, mesmo que, por vezes, não possua plena base factual. É nesse sentido que, portanto, o mundo contemporâneo advoga pela retórico em detrimento da lógica.

Em quarto lugar, coloca-se o fenômeno da paralaxe (dissonância) cognitiva, extensamente estudada e pesquisada por psiquiatras ao redor do mundo. Cabe-nos, contudo, devido ao teor (político) do objeto de análise aqui referido, compreender como este fenômeno se dá no campo da retórica política e, por fim, de como isso se dá no processo de construção do saber histórico. A paralaxe cognitiva, enquanto fenômeno, pode ser conceituada como o alargamento (ou mesmo inversão) do eixo de construção teórica de um determinado âmbito e o eixo da experiência real dos indivíduos no mundo. Nesse sentido, ela representa o ponto de ruptura da formação do discurso (ao menos de um discurso coerente), incitando imprecisões no processo de construção do saber histórico.

Em quinto e último lugar, insurge a importante reflexão que todos os historiadores sérios deveriam fazer, no que tange a produção de conhecimento da nossa área de atuação, a fim de que a ciência histórica não se perca em desmandos de um corpus ideológico, extremamente engessado em seus vícios e perca, por ela mesma, sua legitimidade, tornando-se, a própria História, o maior exemplo de revisionismo que podemos encontrar.

Feitas estas "notas introdutórias", é preciso entrar no porquê destas serem importantes para entendermos os contornos diversamente abundantes deste documentário. A relação entre obras de áudio-visual e a história vem sendo estudada de maneira profícua nas últimas décadas, tendo tal debate ganhado relevância ao redor do debate travado por Marc Ferro, pertencente à terceira geração dos Annales. Muitos autores, de distintas maneiras, interpretaram e deram suas contribuições para o debate, ao qual não é minha intenção expor aqui. Contudo, a fim de ensejar melhor a reflexão sobre o tema, a categoria de escritura fílmica trabalhada pelo historiador, ensaísta e romancista americano Robert Rosenstone representa uma importante ferramenta para pensarmos os contornos da obra em questão, vide que, na proposta de Rosenstone, um cineasta pode, também, ser um historiador, dando ao filme um caráter de documento histórico propriamente dito, o que se dissocia da perspectiva de Ferro, que compreendia que o filme apenas trazia resquícios do período histórico em que foi produzido. Dito isto, e lembrando da fatídica sentença, trazida no documentário, proferida pela ex-presidente Dilma Rousseff, de que "todos seremos julgados pela História", as coisas começam a se relacionar.

Quando ela utilizou-se desta expressão, ela não foi leviana (alô, aspirador!), pois ela sabia muito bem o que estava em jogo ali. O fato da exclusividade de muitos dos momentos retratados por Petra em seu "documentário" e a facilidade e proximidade explícita que muitas imagens logram à narrativa já demonstram que tudo isto já estava sendo esquematizado. Não é a primeira e muito menos a última vez que se proporá uma reescrita da História desta forma, pautada numa narrativa política. Pelo menos, ressalva seja feita, o filme assume o seu lado. O problema, no entanto, é que a mesma coragem em posicionar-se não se estendeu para o trato honesto com os dados deixados pelo devir histórico. É por essas e outras que, pessoalmente, vivo salientando a falta de acuidade dos profissionais ligados à História do Tempo Presente.

Quanto ao conteúdo do "documentário", não há como abordar todos os pontos destoantes, devido a imensidão da presença destes. De toda forma, essa não é, desde o início, a minha proposta. Como bem apontei no início deste ensaio, a reflexão deste ensaio está orientada para outra direção. O ponto de celeuma da discussão, ao menos para mim, está na proposta da narrativa em si. Tudo é muito bem moldado de modo a instigar a emoção do público que assiste à película, construindo um culto à personalidade catártico que acompanha - como tudo relacionado à esquerda - a insistência em polarizar o mundo na dialética hegeliana do master and servant. Até mesmo as concessões ("críticas" - e ponha aspas nisso) feitas pelo documentário são apenas uma cortina de fumaça, sob a qual eles constroem uma imagem de isenção que não existe. O próprio vício terminológico adotado pela narradora, a própria Petra Costa, já demonstra as intencionalidades das distorções cometidas pelo trato dos acontecimentos, desvelando o não-dito pelo dito (para usar de um dos princípios da linguística). E todo historiador honesto compreende que, ao analisar um acontecimento histórico, é extremamente importante que se apresente os elementos que contrariam a posição pré-estabelecida do analista, mesmo que isso seja feito para solidificar esta posição. E isto, sem dúvida, o documentário não faz.

Para concluir, por fim, fica a problemática que aqui me propus apresentar: quando a formulação de uma narrativa, dentro da construção do saber histórico, é levada à cabo pela retórica pura e relega à lógica um papel de coadjuvante, temos a subversão dos fatos, privilegiando o eixo da base teórica e, por fim, estabelecendo uma reescrita dos eventos sob a égide do fenômeno da paralaxe cognitiva. No caso do "documentário" em questão isto fica bem evidente. Se trata de uma tentativa, de intenção poética, de promover uma leitura da história para se perpetuar com o tempo, traçada por fins político-ideológicos. Sua preocupação com a honestidade intelectual, portanto, é praticamente nula, incorrendo em constantes ilações e teses conspiracionistas durante praticamente todo o tempo de tela, que só agradarão, de fato, quem está engessado nos vícios da narrativa política moldada por esta perspectiva, mas que, enquanto ferramenta documental da história, traz em seu conteúdo uma nulidade sem precedentes, que serve-nos - e foi o que pretendi fazer aqui - apenas para refletir sobre como se constitui a formação destes conflitos. O perigo real, contudo, é que ela (a narrativa) está aí e muitos compromissados com sua ideologia a elevarão ao patamar de verdade histórica. Cabe-nos, enquanto agentes da História, desvelar os acontecimentos de maneira séria, compromissados com a verdade, pois como bem ressaltava Chesterton: "se a verdade é relativa, é relativa em relação a quê?".

domingo, 16 de dezembro de 2018

MARATONA 30 DIAS DE CINEMA

Quem me conhece sabe que não costumo participar de correntes ou desafios de internet, mas durante os últimos trinta dias resolvi entrar num desafio de cinema em que, durante um mês, eu deveria nomear um filme para cada categoria. Como durante o desafio não pude explicar o porquê das escolhas, segui o conselho do meu amigo Victor Miranda e resolvi fazer uma breve apreciação de cada um dos escolhidos. Assim sendo, o post a seguir possui um cunho mais íntimo e descontraído, sem presunção de nenhuma análise profunda e aprimorada. Para elucidar cada um dos escolhidos, deixarei a imagem do referido desafio ao lado.

DIA 1 - FILME FAVORITO
"Saw" (James Wan, 2004)

Minha ligação com Saw é muito mais íntima do que técnica, devo confessar. Todo mundo tem aquele filme que marcou sua infância e adolescência e que te deu o impulso para o interesse na sétima arte. Comigo, sem sombra de dúvidas, esse filme foi Saw. Não só porque desde sempre eu sou apaixonado por filmes de terror (em especial os que envolvem serial killers) ou pela construção simbólica que o filme monta com suas reflexões subentendidas sobre a vida, mas principalmente pela ligação pessoal que eu fui criando com o filme, que me acompanhou durante o meu desenvolvimento. Afinal, a cada ano que eu completava um aniversário, mais um filme era lançado. E isso se estendeu até 2010, quando a franquia "terminou" até o seu reboot em 2018. Por mais que eu saiba que Saw não é nenhuma obra-prima da sétima arte, eu reconheço o valor que o filme tem para o gênero e a ligação que eu desenvolvi para com a película durante o tempo.


DIA 2 - FILME BRASILEIRO FAVORITO
"Noite vazia" (Walter Hugo Khouri, 1964)

Meu apreço por este filme do Khouri está para além da própria qualidade técnica inquestionável que ele possui, para além das atuações brilhantes e do roteiro bem bolado. Sempre fui um apaixonado por um estilo de cinema voltado para uma atmosfera contemplativa, não é à toa que filmes tão simples como "Ovsyanki", de Aleksei Fedorchenko, tanto me encantem. E talvez à exceção de "Limite", do Mário Peixoto, este seja o maior exemplar desse tipo de cinema aqui no Brasil. Uma verdadeira viagem rumo às profundezas da alma e da representação da experiência humana enquanto uma estrutura melancólica da vida.


DIA 3 - TRILOGIA IMPERDÍVEL
"Trois couleurs: Bleu"; "Trois couleurs: Blanc" e "Trois couleurs: Rouge" (Krzysztof Kieślowski, 1993, 1994 e 1994)

A trilogia deste polaco é de complexa definição, tamanha é a vasta carga de simbolismos (não só narrativos, mas também técnicos) que o filme carrega. Assim como o estupendo "Pierrot le fou", do Jean-Luc Godard, são filmes que elaboram toda uma linha estética e um arcabouço narrativo que agem enquanto produtores de sentido. Para além disto, as discussões embutidas no roteiro (na qual se ligam os seus respectivos títulos) trazem à tona importantes objetos de reflexão acerca das expectativas e desilusões de todo um ideário francês. É um prato cheio pra quem quer aprofundar reflexões sobre tais temas.


DIA 4 - DOCUMENTÁRIO INDISPENSÁVEL
"Why beauty matters?" (Roger Scruton, 2009)

Aqui mesmo neste blog, anteriormente, já cheguei a abordar brevemente o que eu costumo de chamar de "declínio da poesia" (embora ainda não tenha discorrido de maneira mais profunda sobre este tema em específico). Seja como for, esta discussão (e a conclusão a qual cheguei com relação a este assunto) são alinhadas às reflexões que o Scruton, o maior filósofo da atualidade, faz acerca da arte e da função aesthetic nesta. Um complemento muito interessante ao seu magnífico livro "Beauty".


DIA 5 - FILME SUPERESTIMADO
"Citizen Kane" (Orson Welles, 1941)

Antes que os cinéfilos metidos a críticos especializados comecem a espernear e chorar as pitangas, eu preciso dizer que, em nenhum momento, estou desmerecendo o valor da obra do Welles. Eu compreendo todo o valor que esse filme tem para a história e, vale dizer, jamais cometeria a perfídia de dizer que esta película não possui qualidade. Minha ressalva, contudo, é apenas com relação ao endeusamento que essa obra sofre, sendo colocada por muitos como o maior filme de todos os tempos (coisa que atribuo à "Casablanca" e "Lawrence of Arabia", mas isso é outra história). Dizer que este filme está nesse patamar me soa um pouco excessivo, visto que não o considero nem mesmo o melhor filme do próprio Welles (entendo "Touch of evil" como seu auge).


DIA 6 - FILME SUBESTIMADO
"Sleepers" (Barry Levinson, 1996)

Apesar de geralmente este filme sempre aparecer como bem criticado, eu percebo que ele não conseguiu alcançar o valor que eu o atribuo. Tanto por não ter ficado muito conhecido quanto pela própria eficiência do filme (que pode não ser nenhuma obra prima, mas é um filme bem redondinho e encaixado, cumprindo tudo o que promete). Todos os aspectos técnicos e a discussão relevante que o filme traz à tona deveriam, ao meu ver, ter chegado ao conhecimento de mais pessoas.


DIA 7 - FILME QUE TE DEIXA ANIMADO
"First blood" (Ted Kotcheff, 1982)

Existem filmes que te fazem refletir e te provocam um instinto de 'over-analisyng', mas tem filme que simplesmente é feito pra curtir. E pra mim, sem dúvida, não existe nada melhor pra isso do que os filmes protagonizados pelo Stallone. Para além de toda a atmosfera que cerca o Rambo (o filme tinha toda uma carga propagandística, visto que produzido à época em que a Guerra Fria ainda estava rolando), o longa protagonizado pelo Stallone é uma explosão (literalmente!) de ação, que não deixa ninguém parado. A fórmula do gênero em sua excelência!


DIA 8 - FILME QUE TE DEIXA NA BAD
"Danser i Mørket" (Lars Von Trier, 2000)

Uma vez, conversando com um amigo, chegamos ao consenso de que esta película do Trier era "um filme para noites sombrias e nebulosas". Até hoje não consigo discordar dessa afirmação. Muito mais do que um filme triste ou melancólico, esse musical tem uma atmosfera caótica e pesada. A sensação que provoca não é de simples abatimento, mas de uma completa desolação e vazio. Uma agonia interna que vai te corroendo aos poucos durante as pouco mais de duas horas de duração do filme!


DIA 9 - DIRETOR(A) FAVORITO(A)
Sir Alfred Hitchcock

O mestre do suspense! Minha ligação com as obras desse gordinho inglês estão para além da simples majestade de suas obras (tão sublimes que, sobremodo, não preciso nem mesmo discorrer sobre), mas também com a representação que elas tiveram para mim, enquanto consumidor da sétima arte. Foram as suas obras, em grande parte, as responsáveis pela minha formação enquanto cinéfilo e, desta forma, não tenho como retirar este posto dele (mesmo apreciando mais estilos como o do Trier e do Bergman, por exemplo).


DIA 10 - ATOR FAVORITO
Al Pacino

Falar de atuação é complicado, visto que a variedade de composições que os atores fazem durante suas carreiras é, geralmente, muito extensa. Ainda assim, escolher o Al Pacino não foi uma tarefa muito árdua. Ao meu ver, não houve nenhum outro ator que tenha, mesmo passeando por personagens tão diversos, preservado um estilo tão próprio e, ainda assim, ter demonstrado tamanha versatilidade. Um dom raríssimo!


DIA 11 - ATRIZ FAVORITA
Ingrid Bergman

Às vezes uma atuação é muito mais eficiente pela simplicidade do que pela construção espalhafatosa do personagem. É nesse sentido que, pra mim, a Ingrid Bergman é insuperável. Mesmo não provocando rompantes de genialidade em momentos icônicos (como a Audrey Hepburn em "Breakfest at Tiffany's", a Claudia Cardinale em "Once upon a time in West" ou mesmo a Marilyn Monroe em "The seven year itch"), a graciosidade com que a atriz sueca conduzia suas atuações era de uma classe deslumbrante e irretocável.


DIA 12 - ATUAÇÃO MEMORÁVEL
Al Pacino em "Scent of a woman" (Martin Brest, 1992)

Woo-hah! O que esperar de um personagem cego, repleto de traumas e imbuído de um imenso orgulho? A tarefa de interpretar e compor um personagem dessa estirpe não é fácil, mas Pacino é um mestre tão exemplar que faz essa missão parecer brincadeira de criança. A leveza com que carrega seu personagem durante a trama é tamanha que, por vezes, até esquecemos que trata-se de uma figura fictícia.


DIA 13 - FILME QUE VOCÊ MAIS ASSISTIU
"Scream 2" (Wes Craven, 1997)

Aqui cabe uma ressalva: esse filme eu quase deixei para a categoria do dia 15 ("marcou sua infância"), mas reparei que ele melhor se encaixaria aqui. E cabe outra ressalva também: embora eu simplesmente adore essa franquia produzida pelo Wes Craven, ele ser o filme que eu mais vezes assisti não está diretamente ligado à qualidade da obra, mas ao fato de que, quando criança, ele era o único filme que eu possuía em DVD e, portanto, eu o assistia repetidas vezes.


DIA 14 - BUGOU SUA CABEÇA
"Eraserhead" (David Lynch, 1977)

Não é segredo pra ninguém que acompanha esse blog que eu tenho um fascínio enorme por essa obra em específico do Lynch (embora quase toda sua filmografia se encaixaria fácil nessa categoria, rs). Tanto que já escrevi uma resenha (que ficou uma bosta, por sinal... pretendo reescrevê-la futuramente) deste filme. O próprio Lynch já disse que nunca ninguém compreendeu o seu filme por completo e eu arrisco dizer que, talvez, este seja um daqueles filmes que é melhor que assim o seja mesmo. A própria beleza da obra está justamente no mistério que a rodeia.


DIA 15 - MARCOU SUA INFÂNCIA
"Ju-on" (Takashi Shimzu, 2000)

Vendo a película desta categoria, muita gente deve imaginar que tenho alguma perturbação advinda da infância. E desde moleque, confesso, eu já gostava desse tipo de filme. Lembro de meus pais alugando filmes desse gênero nas locadoras do Guarujá e assistindo comigo durante as noites. Foi numa dessas noites que eu conheci "Ju-on" e, desde então, tenho um carinho imenso por esse thriller. Já disse aqui uma vez: para mim, não tem nenhuma outra corrente cinematográfica mais competente que os asiáticos para fazer terror. E "Ju-on" é um dos melhores exemplos disto!


DIA 16 - DARIA UMA ÓTIMA SÉRIE
"Death wish" (Michael Winner, 1974)

A história de um pistoleiro aventureiro que combate os pilantras e salafrários da comunidade não poderia deixar de me agradar. O estereótipo dicotômico (seria isso uma contradição?) interpretado pelo Charles Bronson seria ainda melhor desenvolvido se a trama pudesse trabalhar mais a dualidade que compõe essa vida de dupla personalidade vivida pelo seu personagem e, por conta disto, o filme virar uma série seria uma ótima pedida!


DIA 17 - PERSONAGEM PARA SER POR UM DIA
Jordan Belfort em "The wolf of Wall Street" (Martin Scorsese, 2013)

Essa entra naquela onda de "eu nunca faria isso, mas seria legal imaginar como seria se acontecesse". Não só pela distância (e que distância!) que marca a realidade do personagem interpretado pelo DiCaprio e eu, mas pelo próprio hedonismo que eu imagino que me proporcionaria se pudesse ter uma vida regrada à dinheiro, sexo e violência.


DIA 18 - PÔSTER QUE VOCÊ AMA
"Nymphomaniac" (Lars Von Trier, 2013)

Uma vez escrevi no twitter que "eu não acredito em perfeição, mas não tem nada que se aproxime mais disso do que uma mulher alcançando o êxtase durante o gozo". Passou um bom tempo desde que escrevi isto e não mudo uma vírgula do que disse. E não poderia haver melhor exemplo disso do que eu escolher o pôster desse filme do Trier como meu predileto.


DIA 19 - MELHOR TRILHA SONORA
"Amélie" (Jean-Pierre Jeunet, 2001)

Essa foi difícil, confesso (ainda mais levando em consideração a existência de filmes já citados anteriormente, como o "Danser i Mørket", cuja trilha-sonora foi inteiramente composta pela minha cantora predileta: Björk). Ainda assim, resolvi optar por um filme que eu nem gosto tanto, mas cuja trilha-sonora me encanta profundamente. As composições que o Yann Tiersen realizou para esta obra, embora de imensa simplicidade, possuem uma beleza melódica exuberante!


DIA 20 - MELHOR VILÃO
Zaroff em "The most dangerous game" (Ernest B. Schoedsack & Irving Pichel, 1932)

Essa foi a que eu mais fiquei indeciso, pois durante um bom tempo pensei em colocar o vilão do filme "8MM", do Joel Schumacher, nesta categoria. A inclusão dele, contudo, seria muito mais atribuída à uma frase específica que ele diz, da qual nunca esqueci ("não tenho muitas respostas para dar, nada do que eu disser vai fazer você dormir melhor à noite. Eu não fui surrado, não fui molestado. Mamãe não batia em mim. Meu pai não me estuprou. Eu sou o que eu sou."). Lembro como, à época que eu assisti, isso me provocou imensamente, visto que rompia com todo o tradicional "mito de origem" que geralmente vêm atrelado aos vilões. Era um vilão dizendo "eu sou mal porque simplesmente quero ser". Ainda assim, eu tive de reconsiderar, pois Zaroff é, ao meu ver, a figura que construiu todo um modelo que viria a se sedimentar na persona dos vilões da sétima arte. Ele é, ao meu ver, o estopim de toda a construção de uma fórmula e precisa ter seu valor resguardado.


DIA 21 - TODOS ASSISTIRAM, MENOS VOCÊ
"Ferris Bueller's Day Off" (John Hughes, 1986)

Eu confesso que tenho uma preguiça imensa desses filmes de adolescente dos anos 80 e 90 (de todas as épocas, na realidade). São narrativas que costumam ser tão esvaziadas de sentido que a maior parte das vezes não vale nem a pena conferir, pois só gera decepção. "The breakfast club" que o diga! E mesmo esse filme tendo elementos que me atraem, como o fato dele quebrar a quarta barreira, eu nunca me senti verdadeiramente impelido a curti-lo adoidado.


DIA 22 - TE FAZ CHORAR DE SOLUÇAR
"To kill a mockingbird" (Robert Mulligan, 1962)

Uma categoria que eu tive de subverter um pouco o sentido, pois confesso que nunca chorei vendo um filme. Meu grau de sensibilidade não chega à tanto. Contudo, houveram filmes que muito me emocionaram e, talvez, o que tenha chegado mais perto de me fazer esboçar alguma balbucia foi, definitivamente, essa adaptação do livro do Harper Lee. Simplesmente belíssimo!


DIA 23 - TE FAZ REFLETIR SOBRE A VIDA
"Seul contre tous" (Gaspar Noé, 1998)

Os filmes do Noé não são fáceis. Lembro de quando assisti "Irreversible" e fiquei com ele na cabeça por pelo menos uma semana. Ainda assim, esse filme tem todo um quê especial. Ao observá-lo com cuidado e reparando todas as nuances que compõem os dilemas da mente perturbada do personagem principal, você consegue traçar paralelos bizarros entre as suas divagações e a vida real. Há momentos em que essa espécie de reflexão inóspita te joga no chão e te dá um soco no estômago. É o tipo de filme que, goste ou não, vai te marcar de alguma forma.


DIA 24 - TE FAZ QUERER VIAJAR
"Back to the future" (Robert Zemeckis, 1985)

Essa foi a única categoria em que eu fiquei um tempão tentando escolher algum filme, mas nenhum me vinha à cabeça. Pessoalmente, eu não possuo um instinto aventureiro, então esses filmes de viagens de mochilão e respectivos não me produzem uma propensão a viajar nem nada do gênero (embora, cabe a ressalva, eu adore muitos destes filmes, tal como "Wild", de 2014). Foi por isso que resolvi subverter um pouco as regras e interpretar "viagem" como "viagem no tempo" e colocar um clássico do gênero, pois como um "bom" (e coloque muitas aspas nisso!) historiador que sou, considero perscrutar o passado uma aventura deslumbrante.


DIA 25 - MUSICAL QUE VOCÊ CANTA TODAS AS ♪♫
"Moulin Rouge!" (Baz Luhrmann, 2001)

"There was a boy...". Para além da beleza narrativa e estética desse filme, visível à qualquer um, "Moulin Rouge!" possui um lugar especial nessa lista, pois foi o filme responsável por romper com um pré-conceito que eu tinha com filmes musicais. A confluência entre a trilha e a trama é tão bem moldada que, à primeira vez que assisti, encantei-me absurdamente.


DIA 26 - COMÉDIA QUE MAIS TE FAZ RIR
"Monty Python and the Holy Grail" (Terry Gilliam & Terry Jones, 1975)

Comédia... está aí um gênero que eu tenho dificuldade de gostar. Confesso que não sou das pessoas mais risonhas do mundo. Ainda assim, o humor debochado e, muitas vezes, nonsense, que esse grupo britânico pratica me causa ataques de risos que nem eu mesmo consigo entender. Quando os conheci anos atrás, por meia da indicação de minha amiga Gabryela Martins, não dava nada pelo filme, mas entendi todo o carinho que ela tinha pelos filmes desse grupo. E agora tragam-me um shruberry... Ni!


DIA 27 - TEMÁTICA LGBT
"The normal heart" (Ryan Murphy, 2014)

Existem muitos filmes com essa temática (alguns mais cultuados como "La vie d'Adèle" ou outros mais fortes como "Boys don't cry"), mas resolvi escolher esse filme (mesmo ele não sendo nem de longe tão bom, tecnicamente falando, quanto esses outros que acabei de citar) por conta da discussão que ele traz acerca do contexto histórico que ele abarca e a experiência vivenciada pelos homossexuais à época, demonstrando de maneira acentuada os reflexos de uma sociedade intensamente marcada por juízos atrozes.


DIA 28 - FILME QUE ODIOU
"Sombre" (Philippe Grandrieux, 1998)

Ah, esse daria o que falar... é, sem dúvida, a categoria que eu tenho mais certeza da escolha. Lembro quando conheci o filme, anos atrás, por meio de uma resenha que li num blog que não me lembro mais qual é. O autor dizia, lembro-me, das influências estruturalistas e da montagem russa. Da utilização de simbolismos interpretativos e tendências estéticas inspiradas na nouvelle vague. Fazia ele, em substância, um ode tão grande ao filme que me provocou interesse e busquei encontrá-lo para assistir. Quando o vi, contudo, foi uma decepção tão grande que só o que pensei é que aquele cara devia estar muito chapado quando escreveu aquela resenha, porque só uma mente muito tresloucada pra enxergar tanta referência numa história bizarra de um cara que tem um relacionamento abusivo com uma mulher e que ficam nesse vai-e-vem narrativo durante mais de uma hora.


DIA 29 - FILME CLÁSSICO
"Det sjunde inseglet" (Ingmar Bergman, 1957)

Existem filmes que, para qualquer cinéfilo, são "obrigatórios". Este, pra mim, é um deles. A genialidade com que o Bergman desenvolveu o seu conceito de diálogo com a morte foi tão bem elaborado que arrisco dizer, sem medo, que esse é o filme com mais camadas de reflexão e possibilidades de absorção de uma investigação psíquica que uma obra cinematográfica já conseguiu realizar. É, sem dúvida, um marco para história do cinema!


DIA 30 - FILME QUE TODOS DEVERIAM ASSISTIR
"Sous le soleil de Satan" (Maurice Pialat, 1987)

Ainda me pego decepcionado toda vez que lembro que ainda não li o livro do Bernanos, que serviu de inspiração à este filme. A viagem que o Pialat faz, através do personagem principal, às profundezas da natureza humana e toda sua fraqueza é de uma maestria insuperável. Seu exame é tamanho que, durante a película, percebemos não só uma pessoa sendo exposta, mas todas as contradições de uma alma em agonia sendo desnudadas. De uma eficiência tal que, sobremaneira, nos faz lembrar da pequeneza inerente que nos compõe...

sábado, 13 de outubro de 2018

Sem Mais Delongas #21: O post-thriller cinematográfico.

(ou a redenção do medo na sétima arte pós-moderna).


A expressão artística é composta por diversos elementos que são, em substância, de grande particularidade. O medo, assim como outros elementos, é um desses particulares discursivos que compõem a expressão artística. O gênero terror, dentro da sétima arte, arrogou-se durante boa parte da história como o responsável pela representação desse elemento discursivo, produzindo diversos clássicos durante a história, tais como "Nosferatu" (1922); "M: O Vampiro de Dusseldorf" (1931); "Na Solidão da Noite" (1945); "O Monstro da Lagoa Negra" (1954); "Psicose" (1960); "Incubus" (1965); "O Exorcista" (1973); "Sexta-Feira 13" (1980); "Hellraiser" (1987), entre outros. A maneira como esse discurso sobre o medo é produzido, contudo, que é interessante de se perceber.

Nos primórdios da história do cinema, nas décadas de 10 à 40 do século XX, o gênero terror focalizou sua produção na construção de fantasias ficcionais, em especial pela influência do romantismo alemão, que dava à estas obras um tom gótico ostensivamente obscuro. Trazia como enredo, principalmente, a construção do imaginário a partir de questões como a loucura, a histeria, entre outros elementos. Daí em diante, com ênfase abundante nas produções dos anos 70, 80 e meados dos 90, o gênero embrenhou-se em um estilo mais voltado para a formação de uma atmosfera de pavor, nos casos de filmes com temas místicos/religiosos, e de espanto, nos casos de filmes de serial killers. A forte marca produzida por este estilo de cinema massificou e popularizou o gênero, possibilitando o surgimento de diversas franquias que conquistaram o carinho de milhões de fãs durante os anos.
"The Anguished Man" (autor e data desconhecidos)
Mas como é de praxe, a fórmula foi usada à exaustão e as produções ligadas ao gênero passaram, com o tempo, a produzir os mesmos vícios narrativos e estilísticos que legaram ao gênero um papel de coadjuvante na sétima arte, tamanha a caricatura vexatória que este veio a se tornar. O esgotamento das técnicas usadas e a falta de inventividade para com o fazer cinematográfico imbuíram ao thriller um desprezo, inclusive por parte dos amantes do gênero, imenso. É com ternura, contudo, que um movimento de "resistência" surge aos poucos, primando por uma nova proposta de linguagem (alô, Godard!) e o abandono das velhas práticas.

O advento desse movimento, contudo, é de difícil averiguação. Filmes como "A Tale of Two Sisters", de 2003, podem muito bem se enquadrar dentro desse processo. É inegável, contudo, o impacto que a obra do Robert Eggers: "A Bruxa" (2015) têm dentro deste cenário. É a partir do lançamento do filme canadense que abrem-se as portas para que futuras produções inovassem suas narrativas e rompessem, de vez, os laços com os vícios narrativos das empulhações extenuantes que foram produzidas na última década. É graças à coragem de Eggers que filmes posteriores, como "Demon" (2015) "Polednice" (2016) e, mais recentemente, os ótimos "Hereditário" (2018) e "Um Lugar Silencioso" (2018) tornaram-se possíveis.

A opção por uma linguagem mais focada em uma atmosfera de asfixia psicológica, com trejeitos trágicos, marca um ar de suspiro para o gênero que, enfim, começa a respirar novamente. A redenção do medo, nesse cenário, passa, justamente, pela construção narrativa que prima o silêncio em detrimento do escândalo, o estranho em detrimento do assustador, a insegurança psicológica em detrimento da dor fisiológica, o mal-estar desencaixado em detrimento do perigo encarnado, o vazio existencial em detrimento do perigo identitário. 

Essas marcas discursivas, altamente influenciadas pela crise de sentido do mundo pós-moderno, elaboram um novo panorama do medo nessa "era" do gênero. Enquanto o thriller clássico se solidificou construindo uma identidade bem definida daquilo que produzia o medo, seja esboçada na figura de um "demônio" ou de um serial killer, o post-thriller tem como substância fundamental o esvaziamento de sentido da própria natureza daquilo que constitui o objeto de produção do medo, pois, para todos os fins, o diálogo importante, aqui, já não é mais o medo em si, mas a própria maneira, muitas vezes heterodoxa, que os indivíduos visualizam a sua posição frente à iminência do perigo. Perigo este que, por sinal, não se pode definir objetivamente qual é, pois somos, nós mesmos, partes circundantes dessa própria produção do medo. 

domingo, 20 de maio de 2018

Dedo de Prosa #21: Vou rifar meu coração (2012)

Capa do documentário.
Quando tomei conhecimento desta produção, que trabalha o cenário da música "brega" no imaginário brasileiro e as compleições perceptivas com as quais esse nicho musical se relaciona com o Eros, fiquei deveras interessado. Apesar de minha pouca idade, esse gênero musical sempre teve em mim um grande apreciador e, portanto, a oportunidade de associar isto a um de meus interesses mais recorrentes - o "mundo dos afetos" - soou-me como uma possibilidade agradabilíssima. Felizmente eu estava correto.

O documentário, dirigido por Ana Rieper trabalha três pontos principais que considero dignos de nota. São eles, respectivamente: a formação do Eros no imaginário popular, a relação sinestésica presente neste nicho do cancioneiro popular e, por último, as implicações sociais e políticas da rotulação pejorativa presente na conotaçâo "brega".

Deste modo, o documentário estende seu alcance narrativo tanto aos campos poéticos, presentes nas expressões sensoriais que circundam o tema, como nas características imanentes que decorrem consequencialmente das estruturas de poder que agiam (e agem) sobre esse gênero musical.

Sobre a formação do Eros, o documentário realça as particulares perceptivas de pessoas comuns acerca do que constitui o amor, nas suas mais variadas ordens e intensidades. De tal modo que a expressão trágica presente nessas percepções reflitam todo o ardor e a confusão caótica que constitui a vida dos afetos. Sobre isto, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (Vozes, 2017), em seu livro “Agonia do Eros”, demonstra - embora eu não concorde com sua consequência final, mas não tratarei desta aqui - como a massificação do entendimento do Eros enquanto despojamento da relação com o Outro ("atopia of the Other") e a positivização dos prazeres como constitutivo do campo dos afetos, refletem a derrocada do amor no mundo contemporâneo. Ou seja, a posição de entrega e fragilidade que, superadas pelas condições do mundo contemporâneo, representam os estímulos da formação do Eros, é a base constituinte do imaginário popular da época.

Desta forma, como demonstrado no documentário, que a relação desse imaginário com a música "brega" se dá. A realidade presente do campo dos afetos, como entendida à época, era representada simbolicamente nas representações desses tantos artistas. A verdade dos sentimentos expressos nestas músicas acabavam por produzir um sentimento de pertencimento e identificação que, a despeito da distância entre artista e ouvinte, os conectava por meio de tais produções. A própria realidade sócio-econômica de ambos (que trabalharei mais à frente) fazia um recorte de aproximação entre tais círculos sociais, que interagiam entre si.

Dito isto, fica a questão: por que a aferição de música "brega", se tais canções possuíam tanta popularidade e vendiam aos montes? A que interesses essa aferição pejorativa servia? Pegando um gancho no comentário feito pelo Agnaldo Timóteo no documentário: "Eu não sou brega, pois quando eu subo no palco eu sou um monstro. [...] Por que essa música é brega? Só porque ela não é do Chico Buarque?"

As implicações desse simples comentário, porém, são mais profundas do que aparentam. Em seu “Manifesto do Nada na Terra do Nunca”, Lobão (Nova Fronteira, 2013) afirma:

[...] existe uma invariância de estruturas que governam o (des)conhecimento, sancionadas por uma cartilha ideológica, emulando um presente decalcado de um passado cenograficamente glorioso e impossível de ser superado. Na música, a MPB, sigla criada na época dos festivais para designar a produção musical de quem se alinhava ao pensamento de esquerda nos anos 1960 e para excluir os demais (sob todos os pretextos), é o exemplo típico de indução por meio da repetição obssessiva para dar a ideia de que a qualidade e a excelência do nosso cancioneiro, de que os grandes gênios e arautos da liberdade eram um fenômeno exclusivo daquela época e daquela sigla de proveta.
No final do século XIX, o intelectual brasileiro, órfão da monarquia, procurava desesperadamente construir uma nova identidade nacional a partir das condições reais da existência do país: a pobreza. Houve um grande fluxo de pesquisas e obras voltadas para o interior, mas sempre numa abordagem um tanto forçada, afetada. Na verdade, havia um certo incômodo em perseguir uma identidade brasileira tão diferente da realidade em que esses intelectuais bem-nascidos foram formados. E essa procura, a meu ver, jamais teve fim. (LOBÃO, 2013, p. 25-26)

Desta forma que, na entrada do século XX, tantos movimentos de cunho nacionalista surgiram: seja ele o modernismo de 22, o tropicalismo ou, por fim, a MPB. Sob o jugo desse núcleo duro de intelligentsia que foi se formando, com o decorrer do tempo, a sujeição da música "brega" ao coronelato de intelectuais com interesses político-artísticos escusos. A "máfia do dendê" - termo eternizado pelo jornalista Cláudio Tognolli - sedimentou os horizontes dessa influência a ponto de produzir uma estratificação cultural, de tal forma, que artistas que não estivessem presentes neste círculo dificilmente conseguiriam alçar voos maiores para suas carreiras. Sobre isto, Lobão complementa:

O que se pode concluir com esse panorama é que temos arraigados em nossas entranhas vícios de auto-imagem que nos arremessam em nossas entranhas vícios de auto-imagem que nos arremessam ao mesmo lugar. Vivemos num presente contínuo em que os mesmos valores e as mesmas figuras se repetem ao infinito, sem que qualquer alteração relevante possa ser vivenciada.
Essa atitude monomaníaca é uma mentalidade concebida pelo filósofo revolucionário franco-argelino Frantz Fanon: a vocação histórica de uma burguesia nacional seria de "se negar enquanto burguesia, de se negar enquanto instrumento do capital, para se tornar totalmente escrava do capital revolucionário". Com esse discurso de esquerda idiota, fomos vitimados por uma vasta produção de canções dedicadas a traduzir a realidade do povo através do delirante e culpado ponto de vista do intelectual/artista da classe média, no sentido de doar uma verdadeira "consistência" a algo a que o povão não tinha o menor acesso, pelo que não tinha a menor empatia, muito menos interesse: a música de cunho social com letras que deveriam ser... inteligentes.
Daí a grande frase atribuída a Joãosinho Trinta: quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta é de luxo. (LOBÃO, 2013, p. 34)

Ou seja, a condição popular da música "brega" foi, em substância, solapada pelos interesses masturbatórios de uma elite cultural que se jactava das suas produções, intensificando as tensões sócio-políticas que circundavam o seu não-pertencimento aos interesses da massa, visto que o que interessava à tal indústria cultural (alô, Adorno!) era a formação de uma consciência coletiva que favorecesse determinadas predileções abstratas. (Para mais, ler "Esquerda caviar", de Rodrigo Constantino; "O ópio dos intelectuais", de Raymond Aron e " Os intelectuais e a sociedade", de Thomas Sowell).

O documentário "Vou rifar meu coração" - em homenagem a faixa homônima de Lindomar Castilho -, portanto, reflete lindamente o panorama simbólico no qual a música "brega" está inserida. Isto posto, percebe-se como a assimilação das paixões, tais como são - ler "O gozo genuíno" -, por parte deste gênero musical e a erudição com que este trabalha o campo dos afetos é, sobremodo, de uma profundidade exímia. O declínio da poesia (tema que tratarei em ensaios futuros) no mundo contemporâneo adiciona ao campo dos afetos uma superficialidade de tratamento que, sobremaneira, desorienta e empobrece as relações afetivas, de tal forma que o fenômeno das identidades tergiversantes reincidam na proliferação da destruição atroz das compleições simbólicas da vida afetiva. Perde-se a sujeira no amor e a poesia no desejo. O Eros agoniza.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Sem Mais Delongas #20: O gozo genuíno.

(ou como o sexo representa o humano na sua mais profunda natureza).


"Tudo no mundo está relacionado a sexo, exceto o próprio sexo, que está relacionado a poder." - Oscar Wilde


Em tempos em que o debate público foi tomado por um puritanismo tacanho (de todas as ordens) e a sexualidade é constantemente ameaçada, de todos os lados, a simples menção do sexo como algo despudorado, possessivo e visceral causa calafrios. De um lado bufam os puritanos em nome da beatitude virginal; do outro alardeiam os hipócritas metidos à desconstruídos que policiam qualquer espécie de "excesso" que consideram - arbitrariamente - violador.

Esquecem-se, talvez, de considerar um elemento importante que estimula o entrelace carnal entre dois indivíduos, que - para todos os fins - é o objetivo último de qualquer transa: o gozo. Arrisco-me aqui a soar utilitarista ou, até mesmo, hedonista, mas a imposição de comportamentos sexuais, expressos nas mais variadas ordens, por parte desses "policiais do sexo", é um completo descompromisso para com o exercício mais intrínseco da troca sexual entre dois indivíduos: a busca pelo prazer.

E não se trata aqui, em substância, de negar as diversas dimensões que englobam o ato sexual, reduzindo a questão apenas ao prazer per si ou mesmo colocando o prazer como o único objetivo do sexo, plastificando - consequentemente - toda a complexidade de elementos que giram em torno do ato sexual.

É óbvio que existem questões sociais, históricas e, principalmente, biológicas dentro da história da sexualidade. E, de tal forma, é claro que o ressentimento de nossa geração também decorre da perda de significado das relações sociais, nos mais diversos âmbitos (inclusive o sexual). O meu ponto, no entanto, é no que tange ao aspecto mais íntimo de como as pessoas interagem sexualmente.

A descoberta de diversos métodos contraceptivos; a descoberta do viagra; a facilidade de se conseguir o ato sexual impulsionado pela fragilidade das relações sociais: tudo isso impulsionou uma banalização do sexo, de forma que sublimou-se o prazer à um patamar sem precedentes, despindo todo o "foreplay" de seus elementos complexos e confusos e das responsabilidades que antes haviam de ser lidadas com relação ao ato sexual. Lembremos, afinal, da sensação de fragilidade que acomete à quem está transando: uma amostra de exposição; a nudez como reveladora das fraquezas individuais.

Isto posto, acaba-se por entender - embora continue sendo abjeto - esse levante em prol da defesa da castidade e da santidade. Com a desaparição de todo esse corpo de intrincamentos no que concerne ao campo das relações sexuais, toda uma massa de puritanos (um tanto hipócritas, se formos sinceros) brada em alto e bom tom sob a tutela dos "bons costumes".

Mas embora a crítica à perda de significado do sexo seja interessante - por mais que eu não concorde com ela -, em especial no tocante a criação de uma certa automação/plasticidade das relações sexuais, na sanha descontrolada pelo rompimento do "tabu" relacionado ao sexo, enxergo nela um caráter muito mais pessoal do que generalista. Apesar do cerne dessa crítica estar ligado ao fator de equilíbrio do seio social, a maneira como ela se manifesta não soa tão autoritária como o constante discurso dos humanistas falsários.

Sobre isto, é curioso como boa parte da mentalidade desses pudicos de meia tigela gira em torno de um fetichismo barato, no qual deve-se condenar essa ou aquela maneira de expressar-se sexualmente. De um lado, restringe-se o sexo apenas ao matrimônio; do outro, censura-se qualquer "excesso" - em especial ao que diz respeito a maneira com que o homem deve se portar - em uma transa.

A farsa da preservação dos interesses desorienta o que há de mais espontâneo nos desejos sexuais, de tal forma que o sexo tenha se transformado em uma expressão extremamente caricata e frígida dos desejos humanos; não é à toa que somos a geração mais ressentida que já passou pela história da humanidade.

A coibição de simples atitudes cotidianas do desejo sexual produzem consequências extremamente nocivas no consciente coletivo. Não é por acaso que, por exemplo, a seita do "empoderamento feminino" tenha castrado o homem de tal maneira que, mesmo atitudes banais, tais como xingar sua parceira na hora da transa, dar-lhe um puxão de cabelo ou mesmo um tapa um pouco mais acintoso, tenham se transformado em uma expressão degenerada e sintomática de um machismo atávico e inadmissível.

Da mesma forma para as mulheres que, na sanha descontrolada de uma imposição arbitrária de terceiros, veem-se impelidas a não agir dessa ou daquela forma, a fim de não legitimar essa relação de "submissão" perante o homem. E quão numerosos não são os chiliques revoltosos disfarçados de críticas sociais que atentam para o quão abjeto é uma mulher se sujeitar a fazer sexo oral num homem (pois a construção iconográfica dessa cena geralmente a coloca de joelhos - um sinal de sujeição, segundo tais "críticas") ou mesmo colocar-se "de quatro", pois isso sugere uma animalização (essa mesma posição em inglês chama-se "doggystyle") da mulher, tornando-a apenas um objeto de satisfação do prazer masculino!
"L'Origine du monde" (Gustave Courbet, 1886)
Toda essa histeria coletiva, reforçada sob a tutela de "crítica social/comportamental", não passa de um autoritarismo tacanho e vergonhoso. Não é da conta de ninguém a forma como dois indivíduos - na particularidade de suas vidas privadas - interagem sexualmente um com o outro. Ambos estando de comum acordo, que se satisfaçam da maneira mais intensa que puderem!

O "eunuco contemporâneo" narrado pela Camille Paglia (uma feminista, vejam só!) é decorrência de uma intensa suavização do comportamento masculino, para além de diversos outros fatores impulsionados pela covardia gerada pelo paradigma da previdência do mundo contemporâneo, em especial pela crescente (e não tomando isso como algo ruim, claro) produção material proporcionada pela sociedade de mercado.

Todo esse escopo de nuances faz com que, tanto homens como mulheres, fiquem confusos em meio a algo tão cotidiano como o sexo. É eliminado de suas mentes que, como bem disse Oscar Wilde, o sexo é sim uma relação de poder, incluindo-se neste uma pitada de desrespeito.

Da mesma forma que as relações afetivas, o sexo também é um nicho das relações humanas em que há um intenso conflito entre a liberdade e a dominação, no qual projeta-se no outro os desejos e anseios de satisfação sexual. Não há nada mais satisfatório do que presenciar que a outra pessoa está extasiada, de tal forma, que se encontra completamente entregue às suas ações.

O olhar safado; a sensação de submissão e dominação; o desejo descontrolado pela satisfação do outro; a tara proporcionada pelo toque. Tudo isso é condição inequívoca de expressão sexual, despida de julgamentos prévios e imposições morais externas. Toda a atmosfera de devassidão e sujeira que compõe o ato sexual é de uma natureza intrinsecamente deliciosa; e assim o é, justamente pelo prazer de possuir o objeto de seu desejo. Pois para além da submissão de um ao outro, a característica mais crucial do sexo é justamente a submissão de ambos ao tesão.

Tal processo de policiamento do sexo é tão sacal que, em substância, nichos comportamentais como o BDSM provocam escândalo quando ressaltados como possibilidade dentro do sexo. Um dos maiores lixos produzidos pela "indústria cultural" (alô, Adorno!) - leia-se "50 tons de cinza" - demonstra bem como esse processo acontece. Enquanto toda a produção "cultural/artística" (sic) de massa foi tomada por uma vulgarização sem precedentes (e boa parte destes desconstruídos hipócritas a defendem), a vida íntima de um casal é constantemente atacada sob a égide da defesa contra "excessos".

Todo esse escândalo causado pelo sexo possui um caráter totalmente histérico. Lembremos que, afinal, no pensamento freudiano, a histeria sempre esteve ligada à negação do gozo. A demonização do sexo, na contemporaneidade, não é diferente.

O sexo, mesmo na sua mais tradicional expressão, é a representação mais clara e verdadeira do instinto animalesco que se esconde sob os desejos humanos; a expressão mais objetiva das taras e dos prazeres que escondemos no nosso subconsciente. Apenas um lunático, em substância, condenaria um determinado comportamento sexual da vida íntima alheia. Afinal, alguém que está interessado em alcançar o gozo nem mesmo teria tempo de ficar lidando com tamanhas picuinhas...

"Suprima as taras e os vícios, elimine as preocupações carnais, e não reencontrará mais almas; pois o que chamamos com esse nome é apenas um produto de escândalos interiores, uma designação de vergonhas misteriosas, uma idealização da abjeção..." - Emil Cioran