quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Transgressividade #2: Subconscious Cruelty (1999)

Capa de Subconscious Cruelty
Embora o nome de Subconscious Cruelty geralmente esteja ligado às cenas grotescas e perturbadoras do filme, não se pode – e nem se deve – esquecer que, apesar de toda a atmosfera chocante que há no filme, ele nos apresenta um roteiro e um enredo brilhantes (que, em certo ponto, podem até ser considerados filosóficos) e uma viagem às profundezas do subconsciente humano e as crueldades que carregamos conosco, que nos traz uma excelente reflexão sobre a verdadeira natureza do ser humano.

Logo no início do filme, a trama nos apresenta uma pequena introdução do narrador que, logo de cara, já nos dá uma ideia do que vem pela frente.

“Realidade... ela nos prende a um ciclo monótono e mortal. Toma conta de nossos sonhos e desejos com inúmeros obstáculos que se ligam entre si, com cruel ironia. Tentamos nos esconder dessas inescapáveis verdades com mentiras, como o cinema; usá-las como um escudo para fugir. Um abrigo para nos proteger das dificuldades incessantes jogadas em nossos caminhos. Certos filmes podem tentar absorver nossa energia negativa, em uma esperança de que talvez eles possam manter nossas mais obscuras emoções sob controle. Mas, infelizmente, somente a luz trêmula consegue pacificar nossos demônios por tanto tempo. E será impossível ignorar a realidade humana, muito mais terrível do que qualquer filme possa ter tentado retratar.

Com esse sublime introdutório, Hussain já demonstra o que pretende fazer com seu filme: retratar a mente humana da forma mais cruel, doentia e obscura quanto possível. Hussain pontua que, muitas vezes, é a realidade que nós queremos esconder.

Logo após esse introdutório, segue-se uma sequência de imagens contendo, em letras garrafais, um dos fatores primordiais para a magnificência da obra: a bipolaridade do cérebro humano. Nessas imagens estão:

“O cérebro humano é dividido em dois hemisférios: direito e esquerdo. O lado direito controla os pensamentos intuitivos, passionais e criativos, enquanto o esquerdo domina os pensamentos lógicos e racionais. O lado direito é a mais pura droga que libera sentimentos desinibidos... sonhos que podem ser vistos... destrua o lado esquerdo do cérebro... destrua suas mentiras...

Essa simples definição reforça ainda mais o intuito de Hussain com seu filme. Mostrar a verdadeira realidade do ser humano... escondida no submundo da sua mente.

É importante dizer que o filme é dividido em quatro segmentos, e que eles – podem ou não – estar interligados. Cabe ao telespectador tentar compreender essa parte.

Em seguida, o filme realmente começa. E como ponto de partida, somos apresentados ao primeiro segmento, denominado Ovarian Eyeball. Uma cena onde uma misteriosa mão faz um corte na carne da mulher/cobaia e coloca a mão por entre o corte, retirando de seu ovário um olho.


Aí você me pergunta: um olho? Sim, um olho. Por quê? Talvez para reforçar a ideia de que a realidade é volúvel. A cada um caberá sua interpretação pessoal.
  
"Eu poderia ser o criador supremo. A chave estava dentro do meu corpo.
A semente da verdade, que é o gênese de toda a criação. É irônico que,
sem o poder que eu detinha... nenhuma mulher jamais conseguiria dar à
luz. Sem esse catarro esquisito, o ser humano nunca existiria."
No segundo segmento, denominado Human Larvae, é relatada a história de um rapaz que vive isolado em uma casa decrépita com a sua própria irmã. Durante todo o segmento, não há diálogos diretos, todo esse tempo é descrito através da narração do próprio rapaz, que atua como narrador personagem.

Inicialmente, ele nutre por ela um amor descomunal, um certo “complexo de Édipo alucinado”, mas logo isso começa a se transformar quando ao ver ela transando com outros homens, ele começa a filosofar sobre a vida e a morte e a nutrir, a partir desse momento, ódio por mulheres grávidas.

Um dia, ele tem uma ideia cruel e zombeteira, como ele mesmo descreve no filme. Com isso, Hussain nos mostra como pessoas com situações favoráveis podem ter pensamentos tortos acerca de qualquer assunto.

Durante esse período, ele mesmo afirma: “Minha vida lentamente torna-se o que se pode considerar um pesadelo, uma visão cruel e violenta atrás da outra... Imagens que foram construídas sobre uma ótica de depravação e horror. Mas eu adoro isso, adoro crueldade e tortura”.

E continua: “Aprendo com essas visões que o monstro mais forte de todos, o que causa mais dor, destruição e sofrimento... nada mais é do que o próprio ser humano”

Conforme a passagem dos meses da gestação prosseguem, o ódio (e o amor irrefreável) crescem, juntamente com o feto dentro dela. À medida que o período para o nascimento do feto está próximo, o rapaz realiza todas as preparações para a concepção da criança. Ao menos, é o que ela espera.

Quando o fatídico dia chega às vias de, o rapaz coloca em prática a sua ideia. Ele assassina o feto, cortando-o com um estilete, durante o processo de nascimento, enquanto o feto ainda está saindo do corpo da mãe. Seguidamente, ele retira o feto da vagina da irmã e o coloca acima do rosto da irmã, deixando o sangue dele cair no rosto dela e exibindo sua zombaria.

Ao transcorrer a cena, o rapaz ainda morde o cordão umbilical e o enfia de volta na vagina da irmã – ainda com hemorragia – deixando uma parte dele para fora. Nas palavras dele, ele nos dá sua impressão: “parece que um pequeno e sangrento pênis cresceu nela... com a espessura de dois canudos. Faz-me rir, eu acho”.

Logo após a sessão grotesca de acontecimentos, o cujo coloca o feto ao lado de sua mãe também morta. Segundo ele: “talvez seu coração tenha explodido”. E com os acontecimentos que ocorrem, isso não seria uma surpresa.

Esse insano acontecimento foi a forma que o rapaz encontrou para escarnear da criação. Claramente fazendo referências à Criação, pode-se perceber o quanto essa história minimaliza o ato da criação, tornando-o supérfluo.

O terceiro segmento, denominado Rebirth, é um tanto quanto difícil de se compreender. Não contem diálogos ou narrações, esse curto segmento mostra apenas um bando de pessoas fazendo sexo com a Natureza, como que estivessem em algum tipo de ritual pagão. Enquanto isso, abrem feridas na terra e a fazem sangrar, como se estivessem a arrancar órgãos.

Os auges desse curto segmento são os momentos em que uma mulher quebra um pequeno galho mordendo-o e este começa a jorrar sangue, e quando um homem aparece pagando um boquete para uma faca. Por quê? Provavelmente para salientar o já inexistente lado esquerdo do cérebro.



"Bocetas, como ousam fazer isso comigo."
O quarto segmento é denominado de Right Brain/Mortyrdom. Nele é contado a história de um homem comum, de aspecto religioso, e – faz-se notar – frustrado sexualmente. A masturbação é o que lhe resta. Por isso, o que se vê por alguns minutos é a cena deste mesmo homem masturbando-se em frente a uma televisão enquanto assiste um filme pornográfico. 

Depois do 'trabalho terminado', ele se deita e tem um sonho um tanto quanto peculiar. No sonho, ele aparece deitado e completamente nu, enquanto mãos estão a retirar a pele do seu pênis e a masturbá-lo, simultaneamente. 

Enquanto o processo de retirada de pele é transcorrido, um homem aparece e retira o crucifixo que ele trazia consigo. No mesmo instante, o homem lhe diz (imagem abaixo):

"Você usa este símbolo por medo. Os ideais por trás dele não são o que Deus queria. Você usa-o por respeitabilidade."

Em seguida, após a total retirada da pele do órgão peniano do homem, as mãos continuam a masturbá-lo, provocando-lhe uma mescla de dor e prazer, e assim o homem pega uma seringa – contida de alguma substância – e a aplica na região esquerda da cabeça do homem, que simboliza a destruição total do lado esquerdo do cérebro.

Com esse trecho, é bastante notória a forma como Hussain infere que a religião cria obstáculos desprovidos de sentido e faz com que deixemos de lado desejos que nos estão inerentes. Os prazeres mais ocultos que trazemos consigo e que, muitas vezes, deixamos de torná-los reais por medo.

Não obstante, Hussain ainda nos apresenta a “culpa Cristã” em uma cena de total desfiguração da imagem de Cristo, onde um grupo de ninfas mutilam a figura de Cristo e começam a roçá-lo em seu corpo, para assim poder aproveitar o “corpo de cristo” (fazendo referência ao ato de apreciar a hóstia sagrada, que na simbologia cristã representa o corpo de cristo).


Há três pontos cruciais que eu não poderia esquecer. Primeiramente, a trilha sonora. É muito intrigante como, nos momentos de maior acidez, onde as cenas mais fortes aparecem, a trilha-sonora é suave e tranquila. Representando o que o filme mostra, a beleza do pútrido, a pureza do horrendo.

O segundo ponto (e, provavelmente, um dos mais interessantes) é que nenhum dos personagens do filme tem nome, o que nos faz pensar... esse ali poderia ser Fábio, Gabriela, Lucas, Mariana... até mesmo eu.

E o terceiro ponto é: logicamente que apenas alguém totalmente fora de si diria que Subconscious Cruelty é um filme de comédia, porém, o que não se pode deixar de exaltar, é que o filme tem uma alta dosagem de humor negro. Ele ironiza, satiriza e cutuca muitas doutrinas e costumes que a maioria da nossa sociedade exerce. Também por isso toda a revolta que o filme causou e ainda causa em quem assiste.

Se alguém quiser “destruir o lado esquerdo do cérebro”, Subsconscious Cruelty é uma ótima pedida. Se algum sujeito se propuser a assistir esta obra, não a tome com o pré-conceito de que o filme será apenas uma sucessão de mortes, mutilações e cenas aterradoras... se desprenda e tente ver um relance do que pode ser produzido pela Crueldade do Subconsciente.
_____________________________________________________________________________

Curiosidades:

1. Demorou 5 anos para ser gravado (1994 à 1999).
2. É considerado um filme amaldiçoado, desde a tragédia durante sua única exibição no Festival de Litges, onde alguns cinéfilos provocaram uma balbúrdia generalizada nas dependências do Festival, onde duas pessoas foram mortas e muitas feridas.
3. Durante as filmagens, em uma viagem de negócios do Canadá aos Estados Unidos, o diretor foi parado na fronteira e os originais do filme foram apreendidos por conter 'material ofensivo'. Nunca foram liberados, e o filme só pôde ser terminado pois, por sorte, haviam cópias na ilha de edição.
4. O filme foi proibido por 5 anos em cerca de 90% dos países em que foi exibido.
5. Há relatos de mortes inexplicáveis de pessoas que simplesmente assistiram ao filme, sem quaisquer históricos pregressos de doenças ou algo que indicasse perigo à saúde. Mas a ligação do filme com as mortes nunca foi comprovada.
6. Em entrevista, no ano de 2000, o diretor Karim Hussain afirmou que Saló, de Pasolini, é como A Noviça Rebelde perto de seu Subconscious Cruelty.
_____________________________________________________________________________

Notas do autor:

1. Reescrevi essa crítica várias vezes, pois tive que ir retirando várias partes do roteiro que eu tinha transcrito.
2. Na primeira vez que escrevi essa crítica, eu transcrevi (literalmente) o roteiro inteiro, pois o acho absurdamente formidável.
3. Não sou maníaco, desmiolado, psicopata, nem nada do tipo, só por assistir esse tipo de filmes. Tenha a mente aberta e pare com seu preconceito!

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Transgressividade #1: Begotten (1991)

Capa de Begotten
Há tempos que eu planejava escrever sobre Begotten, mas para fazer isso eu sabia que teria de assistir o filme novamente. Fez-se necessário experimentar mais uma vez a sensação de assistir esse filme.

Àqueles que desconhecem essa magnífica obra, tentarei colocar em adjetivos o que esta representa: duro, agoniante, torturante, místico, blasfemo, e demais outras designações que fazem de Begotten uma das obras mais interessantes do cinema.

Assistir Begotten é uma experiência árdua e complicada. A atmosfera do filme é altamente simbólica, tanto é que o filme tornou-se conhecido como um “filme para cultos”, mas deve-se ressaltar que, apesar de tudo, essa obra – em nenhum momento – pode ser considerada vulgar ou um trabalho feito apenas para “provocar”.

Constituído de uma fotografia extremamente intensa (ocasionada pelo uso de uma película de 16mm reversível), a história abarca desde ocultismo metafísico à um surrealismo pirado. O filme também não tem diálogos nem trilha sonora (há apenas uma respiração inquietante, ruídos de grilos e em alguns momentos, sons atmosféricos para agregar à carga grotesca do filme), o que torna ainda mais difícil assisti-lo de forma integral.

A figura de “Begotten” foi constantemente trabalhada por Merhige. Tendo trabalhado nesta cerca de quatro anos: refinando, moldando, fotografando, refotografando e tirando, a cada fotograma, a melhor representação que poderia encontrar. Merhige, com uma teimosia quase “Kubrickiana”, fez de tudo para encontrar a representação ideal daquilo que buscava.

O que mais atenta aos que já assistiram esse filme é quanto ao enredo. Por conter um contexto extremamente complexo e com mínimos detalhes característicos dos personagens, torna-se não só difícil, como quase um desafio tentar compreender Begotten em sua totalidade. Apenas nos créditos finais é que Merhige nos dá uma dica do que pode estar acontecendo em sua película, ao nominar três de seus personagens: Deus, a Mãe Natureza e o Filho da Terra (em carne e osso).

Intuitivamente, podemos perceber certa ligação desses três personagens com a história da Criação. Mas o que é completamente perceptível – e até certo ponto explícito – é que a história é intensamente modificada.

"God killing himself", frase que aparece nos
créditos do filme para descrever esta cena.
Um Deus enlouquecido se autoflagela após se relacionar com a [mãe] Natureza (imagem ao lado), que por sua vez, gera um homem já adulto, com o qual percorre durante o decorrer da sua realidade fria e dolorosa, marcada pela violência e pela irracionalidade. Ao nascer do Filho da Terra, algumas pessoas (que penso representarem a humanidade) o capturam e começam uma sessão de mutilações das mais variadas formas.

Essa sessão de mutilações representam (ao meu ver) toda a dor e sofrimento que a humanidade traz para aquilo que, supostamente, Deus criou. Em palavras pobres, pode-se dizer que Merhige tentou metaforizar a ideia de que "a humanidade é o verme que corrói tudo de positivo que há".

Embora haja certa associação à Criação, Merhige não deixa claro qual a realidade temporal dos acontecimentos do filme. Cabe ao telespectador tentar desvendar o imbróglio criado por Merhige e, dessa forma, conseguir desenrolar o “novelo de lã”.

Além da representação do sofrimento e da dor feita por Merhige, é notório a abordagem das ideias de “princípio” (nascimento) e “fim” (morte), que desencadeiam em reflexões que estão muito além de uma mera “questão filosófica maçante”. Intercalam-se momentos do politeísmo egípcio, do cristianismo, crenças pagãs e demais simbolismos, que – talvez ajudem ou atrapalhem – ainda mais a compreensão do filme, mas que são, sem dúvida, cruciais para a magnitude do enredo.

O que se pode concluir é: Begotten é um filme único em toda a história do cinema. Direcionado a um público específico, Begotten certamente não entrará no gosto popular, mas àqueles que apreciam estéticas experimentais e obras verborrágicas, Begotten é um filme imprescindível. Aos telespectadores desavisados, cabe a coragem e a paciência de se propor a assistir e tentar compreender este que é um dos filmes mais intrigantes de toda a história do cinema.
_____________________________________________________________________________

Curiosidades:

1. Merhige sofreu um grave acidente de viação aos 19 anos. Esse mesmo acidente influiu na forma como ele trabalhou com o oculto e o obscuro.
2. Merhige já dirigiu alguns videoclipes para artistas como: Marilyn Manson, Danzig e Interpol.
3. No videoclipe Cryptorchid, de Marilyn Manson, aparecem algumas imagens do filme.
4. A banda brasileira Woslom também usou algumas imagens do filme no videoclipe de Purgatory.