segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Dedo de Prosa #12: Star Wars: Rogue One (2016)

Capa do filme.
"A força está comigo e eu estou unido à força."

Quer você goste ou não de Star Wars, uma coisa é inegável: a franquia representa um verdadeiro fenômeno no meio cinematográfico. A capacidade do arcabouço narrativo que envolve Star Wars e seu universo é algo simplesmente inenarrável e Rogue One é apenas uma amostra do que está por vir.

É claro que a ausência das figuras caricatas dos filmes tradicionais podem provocar um certo olhar de esguelha aos fãs mais ortodoxos, além de que os protagonistas destes filmes não são o fator propulsor da trama, o que consequentemente não lhes abre tanto espaço para desenvolver suas histórias de forma mais profunda. Mas isso já provou não ser um empecilho para a construção de uma história bem feita em "Star Wars VII: O Despertar da Força" e, novamente, mostrou não ser um obstáculo para os produtores nos presentearem com mais esta pérola.

A despeito disto, as atuações em nada comprometem o enredo e, arrisco dizer, soam bem mais verdadeiras ao produzirem essa separação entre a construção de seus personagens e o desenvolvimento da trama como produção de si mesma. Trama essa que, inclusive, é uma das mais bem definidas da franquia, pois soube estabelecer um roteiro que permitisse ao enredo fluir de forma objetiva, sem entregar informações demais ao espectador na intenção desesperada de estabelecer o seu lugar em um determinado universo cinematográfico (como ocorreu em "Batman vs Superman").

Mas além de tudo isso, o maior mérito de Rogue One é ter conseguido estabelecer, de forma magistral, uma linha cronológica entre os episódios III e IV. A premissa retirada dos letreiros iniciais do quarto episódio se mostra efetiva nas mais variadas ordens, sabendo equilibrar os aspectos técnicos e estéticos que transitam entre estes dois filmes. Embora Rogue One tenha um caráter muito mais característico de um filme de guerra, ele abarca de forma mais profunda as nuances da trama, esmiuçando os detalhes narrativos que incorporam o trajeto da missão retratada no filme. Pode não possuir exatamente um ar de aventura, como os episódios clássicos possuíam, mas ainda possui o tom de urgência, aqui ainda mais iminente, perante o aumento de poder do Império.

Faço do respeito de Gareth Edwards e sua equipe pelo que a trilogia clássica representa, o meu sentimento ao assistir este filme. O primor técnico com os efeitos especiais e os demais aspectos técnicos e sonoros são fantásticos e a construção do filme, sabendo ligar a inevitabilidade do ataque à Estrela da Morte pela Aliança Rebelde aos resultados do que vêm a seguir em Uma Nova Esperança, são reverenciáveis. Talvez também seja isso que o filme busque: nos provocar uma nova esperança. A esperança de que Star Wars ainda tem muito para oferecer e que a revolução, tanto na ficção narrativa quanto na cinematografia do que constitui o universo da franquia, se baseiam em uma verdadeira esperança, tão forte quanto a crença de Chirrut.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Sem Mais Delongas #13: O otimismo parasita.

(ou como a covardia também pode ser nobre).


Muitas são as dicotomias que com o curso histórico ganharam significados qualitativos: Céu e Inferno; beleza e feiura; positivo e negativo; claro e escuro; entre outras. Não muito diferente destas, evidenciou-se uma dicotomia um tanto quanto curiosa (e talvez uma das mais deturpadas) que pudemos presenciar: o otimismo como um aspecto de virtuosidade e o pessimismo como um tipo de corrupção psicológica e/ou social.

É estranho, a priori, pensar que os valores de tais proposições possam estar invertidos, mas uma reflexão mais profunda sobre as mesmas podem produzir resoluções que se dissociam desse senso comum. Filosoficamente, a realidade (e a existência humana, como objeto de investigação de si mesma) produziu uma percepção de que o mundo é um lugar de sujeira, onde a crueldade e o egoísmo são o cerne do funcionamento de uma vida em sociedade. O pessimismo, sob estes aspectos, seria apenas uma corroboração com o cenário no qual todos nós fazemos parte, seja direta ou indiretamente.

Já de caráter um tanto catártico (e absurdamente sofismável), o antagônico otimismo se apresenta como uma válvula de escape à toda essa noção de realidade desgostosa e misantrópica que se moldou com a produção da história do pensamento humano. Apresentando-se como algo lisérgico, toda a noção do otimismo está interligada - quase que integralmente - ao poder de se deixar enganar, se omitindo da realidade que nos cerca; o que é muito semelhante ao efeito de um entorpecente.


A existência é, por si própria, sofrida. O ser (ou existir) é a causa primeira do sofrimento, pois existir é querer (ter vontade) e, em consequência disso, querer é sofrer. É como um pêndulo que está em um estado de desejo e balança até alcançar um estado de saciamento desse desejo, até voltar ao estado primário, onde se volta a querer. Ilustra-se, assim, que a predisposição básica da existência - por ela mesma - é pessimista, pois o saciamento do desejo (felicidade) é apenas uma escala que fomenta a busca por outros desejos (vontades).

Tendo dito isto, o que se configura instintivamente é que um otimista, por sua natureza ilusória, é um covarde. Um covarde, pois aceita trair o próprio exercício ontológico ao assumir uma postura em que as coisas são naturalmente belas e genuínas. Um covarde, pois nega que as oscilações de momentos de gozo e de melancolia aconteçam por estas serem apontamentos manifestos de distorções de um estado de tristeza, onde se está ganhando uma potência de agir que impulsiona um estado de satisfação pessoal.
"Melancolia I" (Albrecht Dürer, 1514).
Contudo, a despeito de tudo isso, é também inegável que a busca por felicidade é - e continuará sendo - uma das grandes aventuras pela qual a existência passa(rá). Assim como esse parasitismo do otimismo é covarde por fraudar a sua própria natureza, ele também é nobre, pois na profundidade de sua concepção, ele fornece - ainda que ilusoriamente - ferramentas para uma luta (muito provavelmente) invencível.

A vida é uma senoide e as variações sensoriais pertencentes à ela são praticamente inevitáveis. O padrão correspondente ao parâmetro de comportamento desta tenderá a ser decrescente, pois toda a gênese da problemática funciona como uma balança, onde um peso é maior que o outro e onde, simbolicamente, essa situação mudará de figura com o impulso de um agente externo, alterando a realidade por um período momentâneo e depois retornando ao princípio magnânimo da existência. O pessimismo é resiliente, o otimismo é utópico. Fora isso, a vida é apenas um exercício de investigação árduo e sem sentido.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Área Cult #6: Sob o Sol de Satã (1987)

Capa do filme.
O primeiro filme francês que eu tive o prazer de assistir (e um dos primeiros "filmes de arte" que vi), essa adaptação cinematográfica do livro homônimo de Georges Bernanos, vencedor da Palma de Ouro, é uma das obras mas simbólicas que retratam temas como espiritualidade e mergulham na profundidade de suas nuances.

Diferentemente do resto da cinematografia do Pialat, muito mais escrachada e crua, esse filme é pautado por uma linguagem um tanto mais romanesca (entenda por romantismo a acepção da palavra em sua origem, não a medíocre compreensão contemporânea que o termo acabou ganhando), muito por conta dos diálogos ásperos e, por vezes, filosóficos, que acometem os personagens da trama, isso sem contar o belíssimo jogo de luzes e sombras que o filme apresenta.

Mas como Pialat, um cineasta que sempre buscou retratar da forma mais fria os dilemas da existência humana e sua realidade melancólica, pôde fazer um filme de cunho profundo e, em muitos momentos, largando de mão a imanência que sempre imperou em seu tato cinematográfico? Simples, ele não largou. Pelo menos, não integralmente.

É óbvio que a acuidade visual com o mise-en-scène e os traços mais suaves adotados por Pialat nesse filme diferem daquilo que o caracterizou, mas a essência daquilo que ele teve como característica permanece. É bastante comum pensarmos que a abordagem da história gire, simplesmente, em torno dos problemas metafísicos que o Padre Donissan (Gérard Depardieu) tem com relação ao seu posto de pároco e os dilemas religiosos que ele sofre, sendo tentado por "Satã". Tudo isso traduziria uma desconexão radical do jeito Pialat de ser, mas basta que se olhe atentamente à trama paralela de Mouchette (Sandrine Bonnaire) e se compreenderá o fator propulsor da trama: o desespero.

Ambos, Donissan e Mouchette, tem em suas tramas uma sensação de agonia perante aquilo que lhes cercam, seja com relação aos aspectos religiosos que transitam por entre a introspecção filosófica do padre ou a agonia existencial da moça resultante de suas relações amorosas mal resolvidas. Embora de características de personalidade extremamente distintas, que fica evidente na cena em que os dois se encontram, a jornada vivida por ambos é uma idealização trágica de existências atormentadas, completamente sem horizontes. Mouchette chega, até, em um momento do diálogo vivenciado pelos dois, a proferir que "Deus é uma piada. Deus não significa nada."
Padre Donissan, peregrinando.
Já o "Satã" do filme é uma figura emblemática. Ainda que representada por uma figura humana, sua condição narrativa é muito mais ampla que a simples teatralidade de algo puramente estético e físico. Satã, aqui, ganha uma conotação investigativa, onde a busca por uma identidade é tratada como efeito resultante de uma força gerada por este primeiro. As camadas interpretativas dos personagem explicitam a mensagem, quando são, paulatinamente, levados por esse processo de perscrutação e corroídos pelo "sol de Satã".

A intenção que vejo em Sob o Sol de Satã é retratar - ainda que de forma intencionalmente vaga, o que acaba deixando um certo ar de mistério no ar - uma certa imprevisibilidade comportamental de nós, humanos, frente a ameaça de inexistência de um significado maior, seja ele de caráter metafísico ou não. A metafísica e o empirismo se coadunam em um sincretismo fantástico, de modo a retratar vidas destroçadas pela religião e pelo mundo. É uma demonstração de como pessoas podem sucumbir perante a perda de sua essência, constituída com tamanho afinco e acuidade. Faz-nos perceber como, por mais fortes que sejamos, podemos nos deixar consumir por um "Satã".

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sem Mais Delongas #12: A hegemonia das virtudes.

(ou como a omissão do contraponto forma uma espiral do silêncio).


Uma das curiosidades do século XXI é a ascensão dos social justice warriors e sua compreensão de mundo coletivista (leia mais aqui). Mais curioso ainda é o modus operandi e as consequências psicológicas e sociais que esse tipo de concepção de mundo acaba gerando, tornando tudo em uma grande engenharia social. Ironicamente, são esses mesmos ditos defensores da igualdade que mais ferem o princípio da isonomia.

Com o sucesso desses coletivos, cresceu uma visão onde essas assertivas representam praticamente uma seita, onde a acepção de tais ideias representa um sentimento de superioridade vinculada a uma "bondade"; uma auto-percepção orgulhosa de defender algo que se tem como nobre. Para fomentar ainda mais esse discurso, a mídia faz uma massiva difamação de todas as linhas de pensamento que não se aliem ao senso comum. Toda essa canalhice gera, paulatinamente, uma completa aversão aos indivíduos que não se posicionem ordeiramente como gado.

Esses comportamentos - muitas vezes - são estimulados pela falta de interesse em se desafiar a compreender outras formas de enxergar o mundo. A omissão de uma posição contrária forma uma espiral de silêncio, onde aqueles que se posicionam 'contra a corrente' se calam, para não serem perseguidos por suas opiniões, enquanto os ditos defensores da igualdade se agigantam como grandes juízes da história; os representantes de um messianismo tacanho e coercivo.

Resultado disso, temos categorizações grotescas de indivíduos que, por terem uma determinada característica, são achincalhados por esses asseclas de uma ideologia imbecilizante; um acinte à todo tipo de compreensão humanitária e sensibilidade para com o próximo. É uma completa ironia que esse tipo de patrulhamento venha logo daqueles que se dizem tão preocupados com o bem-estar dos outros. Além disso, essa postura também compreende uma aceitação social que alimenta e engrandece o ego destes que a defendem. Afinal, quem não quer se sentir bem perante os seus pares?

A grosso modo, a própria terminologia social justice é contraditória por si só. Justiça é um sistema de eliminação de conflitos entre indivíduos. Como pode um sistema ser justo se ele parte do pressuposto que a sociedade é constituída por grupos e não indivíduos? Como pode um indivíduo ser desfavorecido - devido a uma noção histórica - por algo que ele não cometeu e isso ainda ser chamado de justiça?

Ainda se poderia considerar a ideia da famigerada Justiça Social, caso ela respeitasse o conceito com a qual ela supostamente estaria coligada. Infelizmente, o panorama que se configura empiricamente é muito diferente daquele que se idealiza e tal arremedo de pessoas servem apenas como instrumento de manobra para facilitar o engrandecimento de um órgão central, que se beneficia como sendo uma suposta "solução" para os problemas envoltos à desigualdade; o que acaba gerando um enorme círculo vicioso, pois todo esse processo acarreta em mais desigualdade e mais pessoas acabarão reivindicando mais intervencionismo, que acabará gerando mais desigualdade. Vira tudo uma bola de neve, até o colapso social.

Falta um pouco de bom senso em toda essa discussão. Enquanto se permanecer com essa concepção cultural de que coletivos oprimem outros coletivos, se está perdendo o foco dos reais problemas que indivíduos têm na sociedade. Esse instinto ególatra de 'apóstolos da história' apenas sucumbe e segrega a todos nós, transformando todo o processo de discussão dos problemas em uma pilhéria. Foquemos nossas forças em compreender e tentar solucionar as raízes empíricas das situações sociais e não em inferir injúrias aos outros. Só assim poderemos formar uma sociedade equilibrada.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Sem Mais Delongas #11: O enaltecimento do vazio.

(os efeitos da indústria pasteurizada da "música dançante").


Eu sempre achei curiosa a expressão "música para dançar". A premissa básica de toda música reside no seu teor auditivo, portanto essa definição a priori não faz sentido. Pessoalmente, eu não costumo ter muita afinidade com essas ditas músicas, mas me peguei refletindo sobre o porquê destas terem se transformado em um fenômeno no meio musical, especialmente em números de venda. Nessa "categoria" surgem como proeminentes do gênero a música pop e a "eletrônica", que ano após ano acumulam cada vez mais admiradores e prêmios.

Sendo a música uma das artes mais profundas e de maior complexidade, onde sons se transformam em expressões sensoriais da existência, parece-me um tanto estranho que exista toda uma massa de pessoas que se encantam por constantes pastiches, onde já não se vê quase nada de original. Tempos áureos do R&B aparentam estar imensamente distantes e só o que nos resta é um caos musical.

Eventos como o Tomorrowland representam um verdadeiro ode à estupidez. Uma porção de pessoas saltitantes ouvindo um arremedo de DJs de pen-drive (embustes), que apenas incentivam a histeria coletiva da imbecilidade com gestos, sem produzir nada de efetivo musicalmente. Com isso, a tal música eletrônica perde sua essência gradativamente com o crescimento destes picaretas e músicos fantásticos perdem espaço, como The Chemical BrothersThe Crystal MethodThe ProdigyMoby e até mesmo o antológico grupo alemão Kraftwerk.

No cenário da música pop não é muito diferente. A plasticidade de grande parte dos músicos do gênero é tamanha, que se torna difícil perceber se eles assim são por incapacidade musical ou por já estarem acomodados com o sucesso. Pra piorar, o fã ortodoxo se deixa transformar em gado, não admitindo as tacanhas produções que seu ídolo vem fazendo. A massificação de um comportamento que beira o fanatismo por parte destes é tão absurda que, muitas vezes, pouco importa a qualidade material do artista, desde que ele(a) represente um símbolo erótico. A proliferação de "divas" e "divos" explicita uma fetichização dos artistas que é extremamente bizarra.
"A False Note" (Hermann Kern, ano desconhecido).
Fórmulas vão sendo repetidas, músicas totalmente desprovidas de qualquer harmonia ou melodia vão sendo criadas e uma grande massa de gado segue em formação. O exercício da experiência musical vai se reduzindo a um patamar ridículo. Dever-se-ia pensar em música como uma manifestação de arte com função sinestésica e não como estímulo para que um grupo de acéfalos possa mexer a sua bunda. Os efeitos dessa exaltação ao nada são sonoros (com o perdão do trocadilho) e as consequências estão bem claras. Se esse panorama não mudar, a verdadeira arte será dizimada.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Área Cult #5: Blind (2014)

Capa do filme.
"O real não importa, desde que eu visualize bem."

Primeiro longa do diretor norueguês Eskil Vogt, Blind não é somente um filme, mas uma experiência sensorial. A personagem Ingrid não apenas está perdendo a visão, mas também perde sua capacidade de perceber o mundo sensorialmente. Como uma grande viagem, ela passa o filme tentando captar as nuances do mundo.

Por conta disto, o tom branco e claro da fotografia é salientado, contrastando o apartamento espaçoso e minimalista com a magnitude da escuridão de sua cegueira. O tom de pele quase albino da atriz (Ellen Dorrit Petersen) também contribui para a simbiose das imagens, reforçando através destas uma certa suavidade escondida por detrás de toda a atmosfera gélida que impera no decorrer do longa.

Com o desenrolar da trama, é exposto - ora de forma delicada, ora de forma irascível - memórias e agonias existenciais que percorrem a mente e a vida de Ingrid. Essa confusão de experiências dá origem à subtramas que desnorteiam um pouco o espectador, possibilitando ao enredo explorar elementos do cotidiano de forma profunda.

Mas o ponto chave da trama é o roteiro. Não é nada fácil construir toda uma história envolta aos pensamentos de uma personagem, ainda mais quando esta é limitada de um sentido básico como a visão, mas Vogt faz isso brilhantemente. O ser humano não funciona de forma mecânica e o diretor parece fazer questão de enaltecer isso. As aflições e agonias de Ingrid, a frieza de seu relacionamento praticamente falido e até mesmo os instintos sexuais que permeiam a mente humana, estão ali à nossa frente.
Ingrid, imersa no vazio existencial que sua vida se tornou.
Não à toa Vogt levou o Prêmio de Melhor Argumento no Festival de Sundance. Sua obra não apenas capta os dilemas da existência, como mergulha profundamente na intangibilidade da psiqué humana. Um verdadeiro exercício de cinematografia em favor da dramaturgia, Blind é um filme que deve ser visto. A experiência de assisti-lo representa a possibilidade de descortinar a si mesmo, enquanto aos poucos vemos o filme em si sendo descortinado; pois assim como a de Ingrid, às vezes a nossa realidade também não importa.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Sem Mais Delongas #10: O fenômeno acadêmico do Marxismo.

(ou como os jovens são enganados pelo seu instinto "revolucionário").


Que a academia brasileira está tomada - quase que hegemonicamente - por um pensamento Marxista e seus adjacentes, não é novidade. Mas algo que mantém uma certa curiosidade em mim é o porquê de tantos jovens - nas suas mais variadas formas - defenderem uma ideologia falida, já refutada e comprovadamente falha. Claro que isso está totalmente ligado ao ensino centralizador e instrumentalizado que impera em grande parte no Brasil, mas ainda parece haver mais fatores envoltos nessa idolatria descabida ao Marxismo.

Em seu ensaio filosófico "A Mentalidade Anticapitalista", Ludwig Von Mises postula brilhantemente alguns motivos para a crescente ojeriza ao capitalismo (e consequentemente a ascensão do Socialismo), tais como o fracasso pessoal e a inveja dos bem sucedidos. Contudo, a adoção dessa postura por grande parte dos jovens brasileiros parece - ao menos para mim - advir do instinto de revolta que acomete a quase todos os jovens, na sua fase de descoberta do mundo.

Como toda revolta necessita de um alvo, muitos destes enxergam nas ideias de Marx um salvo-conduto para expor suas resignações e definirem, erroneamente, aquele que seria o inimigo: o capitalismo. Mas como poderia uma ideologia como o Marxismo, falha nas mais variadas ordens, sejam elas teóricas e práticas ou econômicas e morais, ser a solução para a suposta exploração do Capitalismo?

Economicamente falando, Marx erigiu seu pensamento na ideia da Mais-valia, conceito formado a partir da errada ideia de Valor-Trabalho formulada pelos economistas clássicos. Segundo Marx, um trabalhador é explorado pelo seu empregador pelo mesmo repassar ao primeiro um valor menor do que a quantidade de trabalho investido por este trabalhador. 

Porém, esta ideia de Marx já foi refutada pela teoria da Utilidade Marginal, que afirma que o que confere valor à uma mercadoria não é o trabalho investido na mesma, mas a sua utilidade. Uma mercadoria que tenha exigido muito trabalho para que seja produzida, não terá valor significante se não tiver utilidade e demanda de compra, resultando na teoria do Valor Subjetivo.

Faltou a Marx perceber que as diretrizes que desenvolvem o mercado funcionam de baixo para cima e não de cima para baixo. É o consumidor que, com seu poder aquisitivo, informa ao produtor o que lhe é útil ou não, fazendo com que - consequentemente - sejam determinados os valores de produção e de trabalho.

Além disso, Marx também esquece de notar um fator importante (e um tanto óbvio) ao formular sua teoria: o tempo. Em termos praxeológicos, um empreendedor investe na produção de bens após ter feito um processo de acúmulo de capital. Após ter passado por esse processo, ele coloca o capital acumulado na produção de bens econômicos que visam desenvolvimento, seja dele próprio, de seus funcionários ou até mesmo de seus consumidores.

Esse empreendedor não pode pagar para seu funcionário um valor x equivalente ao seu lucro, pois se assim o ocorresse não haveria dinheiro para que houvesse investimento no mercado e ele mesmo não teria o retorno do capital investido por ele no início. O capitalismo age como um processo de trocas voluntárias. O lucro funciona como indicador das riquezas produzidas, onde empregador e funcionário trocam voluntariamente o dinheiro pela matéria prima.

Se não houver lucro, não há como saber se o que está sendo produzido está trazendo ou não retorno financeiro, podendo fazer da produção um desperdício de recursos. Sem os preços de mercado e o lucro, seria impossível determinar se estará sendo produzido algo que vale mais que a matéria prima ou mesmo o tempo de trabalho.

Sendo assim, esse sistema de trocas demonstra como tanto empregador, funcionário e consumidor optam por preferências ao interagirem de forma econômica. Com o capital adquirido pelo trabalhador advindo do seu trabalho, ele obtém os mais variados bens de consumo. Caso ele tivesse que produzir ele mesmo estes bens de consumo, ele teria um trabalho imensamente maior para o adquiri-los, por isso ele opta pelo sistema de trocas.

É a forma que o trabalhador tem de consumir os bens de consumo, que ele não teria oportunidade caso ele optasse por produzi-los ele mesmo. Sendo assim, ele não só não é explorado, como ele ganha mais do que o seu trabalho jamais seria capaz de produzir sozinho. Para isso, ele aloca o seu trabalho usando do sistema de lucros, onde terá o seu retorno por meio de trocas voluntárias.

Posteriormente, outros economistas como Mises e Hayek ainda apontaram o problema do Cálculo Econômico, explicando que da forma como o Socialismo é postulado, é impossível que haja um dispositivo de medição de oferta e demanda. Se tal dispositivo não existe, a economia se torna um caos.

No que concerne ao aspecto moral, Marx propõe soluções que são por si só um atentado à todo tipo de aplicação moral. Segundo Marx, para se resolver essa exploração que seria feita contra o proletário, seria necessário que o Estado (órgão central) aja como distribuidor da riqueza. Para isso, o Estado (supostamente imparcial) confiscaria os bens de consumo e anularia o conceito de propriedade privada, delegando todo o funcionamento do mercado às ações estatais.

Tal postulação é imoral não somente por destruir direitos naturais: direito à vida, à liberdade e à propriedade, conceituados por Locke, mas também no que concerne ao campo empírico. Ademais, é uma completa insanidade essa fé inabalável no ser humano (que agrupadamente compõe o Estado) que se mostrou falha em todas as experiências baseadas no Marxismo que o mundo produziu, com milhões de mortos resultantes do autoritarismo e a miséria gerada por tais experiências.

Dito isto, chego no ponto em que manifesto o que aparenta ser a resposta da pergunta feita anteriormente: o fator resultante para essa idolatria ao Marxismo advém do instinto revolucionário e o senso de justiça e igualdade que dominam os mais jovens. Filosoficamente, isso é muito bonito, mas o choque com a realidade mostra como tais conceitos são frágeis.

É no mínimo incoerente que sua inspiração revolucionária se confronte com a liberdade individual ou que você omita, por predileção, a ideia de que igualdade não necessariamente esteja ligada à riqueza e que desigualdade não necessariamente esteja ligada à miséria. Uma sociedade pode ser igualmente miserável ou desigualmente bem sucedida, garantindo um nível de vida satisfatório aos mais pobres.

Mas o mais curioso nisso tudo, é que essa formação de revolucionários de meia tigela não somente os aliena do verdadeiro problema, como faz com que estes se tornem asseclas e promovedores de um discurso despótico e que contribui para que esse problema se propague. É de se pensar até que ponto chegaremos...

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Sem Mais Delongas #9: No princípio era o verbo.

(o esvaziamento das palavras).


Há algum tempo que venho percebendo, nas interações sociais que cercam a minha pessoa (e até mesmo na análise pueril que faço ao perceber a interação de outros), uma certa exaltação incompreensível das palavras e seu impacto em um contexto social e histórico. O valor de uma oração passou a um patamar onde as mesmas não representam - supostamente - apenas a externalização daquilo que se pensa, mas carregam dentro de si toda uma significância e pressão psicológica imbuída em um círculo social.

Tornou-se rotineiro ver pessoas perpetuando a ideia de que as palavras têm em si um valor que transcende a linguística, a semântica ou até mesmo a filologia. Ao meu ver - que há tempos adoto uma "filosofia de vida" inspirada nos versos de "Enjoy the Silence", do Depeche Mode - é um tanto quanto complicado conseguir entender toda essa glorificação abstrata. "Mas e a poesia?", dirão. O que será da poesia senão uma sucessão de mentiras expostas na forma de versos? O poeta é um fingidor, mas só o é por causa das palavras escritas por ele também o serem.

Todo esse senso de abnegação e altruísmo soa imensamente torpe. Não importa quantas manifestações de sentimento se faça, se estas não possuem em seu cerne algum tipo de verossimilhança. Agrava-se mais ainda quando ocorre a repetição desses mesmos dizeres a fim de que incorra um tipo de reforço positivo, onde se fica evidente a total fragilidade desse vácuo emocional.

"Morning Sun" (Edward Hopper, 1952).
Essa aceitação ipsis litteris é algo que me foge a significância. Talvez por ainda ser muito ignorante com relação ao que constitui a vida e as variáveis que a cercam. O fato é: por mais que para mim palavras não representem um valor, cá estou eu adotando uma visão de mundo inspirada nas mesmas e compartilhando essa visão utilizando das mesmas. O que me resta é superar essa contradição e encontrar o silêncio. Aproveitá-lo...

domingo, 30 de outubro de 2016

Dedo de Prosa #11: Inferno (2016)

Capa do filme.
"Os lugares mais sombrios do Inferno são reservados àqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral."

Ron Howard pode não ser um diretor versátil ou cheio de conceitos técnicos sobre cinematografia, mas não se pode duvidar de sua competência e acuidade ao transportar uma história para as telonas, fato que ficou bem claro nos anteriores Anjos e Demônios e O Código da Vinci.

Contudo, na terceira adaptação para o cinema do quarto livro envolvendo o simbologista Robert Langdon, o cenário muda de figura. Um pouco mais impreciso e deixando passar uma porção de detalhes importantes para a trama, Inferno deixa a desejar em muitos aspectos.

Como nas histórias anteriores, o filme gira em torno de Robert Langdon, só que desta vez este primeiro não se encontra em suas plenas capacidades, tendo acordado em um hospital, com perda de memória recente. Ajudado pela enfermeira que o estava auxiliando, Langdon foge da tentativa de homicídio que estaria sendo armada contra ele no hospital. Daí em diante Langdon parte em busca da descoberta do mistério que cerca os dois dias anteriores, a fim de desvendar o porquê daquilo estar lhe acontecendo.

No decorrer da trama, apresentam-se diversos subnúcleos dentro da história, sempre de forma  bem dinâmica, algo que caracterizou Howard nas duas adaptações anteriores à esta. Contudo, apesar desse dinamismo e da urgência que os fatos relevados deveriam dar, a sensação é que o enredo funciona de forma estática. A urgência dos acontecimentos, em muitos casos, é deixada de lado em função de histórias de fundo descartáveis, como a proposta de idealização de um romance vivido por Langdon.

A despeito disto, o enredo central até que funciona bem, centrando-se na ideia do perigo da superpopulação mundial nos últimos séculos, princípio baseado (de forma exagerada, claro) na Teoria populacional Malthusiana ("An Essay on the Principle of Population", 1798) e a "necessidade" de um genocídio generalizado orquestrado pela mente insana do antagonista do filme: Bertrand Zobrist, que cria uma espécie de praga biológica. Para isso, o argumentista fornece uma trama intrincada usando a magnífica obra-prima A Divina Comédia, de Dante Alighieri e o quadro de Botticelli, que esboça os nove círculos do Inferno descritos por Dante em seu livro.
"Mappa dell'Inferno", por Sandro Botticelli
Com o decorrer do filme, o momento do clímax começa a tomar forma e o desfecho é moldado. Um pouco decepcionante, tanto o desfecho quanto o filme falham em muitos aspectos e tornam o filme mais monótono do que a história realmente é. O ponto de destaque fica mesmo nos flashbacks vivenciados por Langdon durante o filme, que proporcionam belas imagens anacrônicas.

Há muito que se falar da fórmula de escrita já batida de Dan Brown, o que acaba resultando em filmes de mesma espécie. Mas apesar de tudo isso, eu gostei do que vi. Confesso que esperava que o filme explorasse bem mais os versos de Dante utilizados no livro do Dan Brown, que - para mim - são o que torna o livro tão instigante, mas o filme ainda consegue entreter. É esperar que em uma possível futura adaptação de um outro livro do Dan Brown, o diretor saiba dar a urgência e a objetividade que as tramas do autor tanto empregam.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Thriller Night #9: A Tale of Two Sisters (2003)

Capa do filme.
A exemplo do cinema francês, outro nicho de produção que vêm ganhando bastante destaque no gênero terror são os filmes asiáticos, repletos de uma tensão psicológica em suas abordagens.

Toda a trama desta magnífica obra é conduzida de forma progressiva, como se a agonia das personagens chamasse para si uma sucessão de eventos caóticos. Uma constante perpetuação de um cenário aterrador.

Além disso, o ar de suspense que o enredo proporciona - não revelando os porquês dos acontecimentos ali mostrados - nos deixam incomodados. Qual o motivo da relação gélida entre o pai e as filhas? Qual a razão do distanciamento entre o pai e a madrasta das garotas?

Aos poucos, com o desenrolar da trama, os eventos se apresentam como um pavio aceso, apenas aguardando o momento do clímax.

Contando com uma fotografia fria e sombria, sempre destacando formas denotando o vazio das cenas e até mesmo o vazio das relações entre aquela família visivelmente desestruturada, toda a estética do filme causa uma sensação incômoda e melancólica.
Su-Yoen e Su-Mi, tendo um embaraçoso momento em família.
As atuações são impecáveis e o enredo é esplêndido. Um dos melhores exemplos dessa excelente safra de filmes asiáticos, A Tale of Two Sisters (que recebeu o tosco título de "Medo", no Brasil), é um fantástico exercício inventivo de cinematografia, onde tensão psicológica e pavor se unem como um elemento só. Com o desfecho do filme, nos resta apenas decifrar de qual lado estamos na linha tênue entre a realidade e a insanidade.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

A Vida é Curta #2: Din of Celestial Birds (2006)

Capa do filme.
Quando eu descobri que o Merhige havia feito um curta-metragem que seria o segundo filme de uma trilogia (não-oficial) que teria sido iniciada com Begotten, eu confesso ter ficado um tanto quanto intrigado. Pensei comigo mesmo: conseguirá ele abarcar toda a complexidade e verborragia empregada em Begotten?

Mas por mais que eu tenha ficado com esse pé atrás, o curta conseguiu quebrar toda essa minha desconfiança. Com cerca de 10 minutos (créditos excludentes), o curta consegue propor uma abordagem extremamente lisérgica, com uma fotografia ainda mais densa e um enredo bastante enigmático.


Logo no início, o curta centraliza uma mensagem, que servirá como base para a experiência que virá. Nela (a mensagem), pode-se ler: "Olá e bem-vindo. Não tenha medo. Esteja confortado e lembre-se da nossa origem."

Isso é o que irá nos guiar, pois novamente o Merhige nos coloca defronte de uma trama sem diálogos e com uma sucessão de acontecimentos ininteligível. Surgem na tela imagens do universo, provavelmente querendo explorar a teoria do Big Bang como o fator propulsor da Criação. Usando de um dinamismo impecável, o curta ainda abre espaço para explorar a criação do dia (Sol) e da noite (Lua) e o surgimento da primeira vida humana na Terra, tudo espelhado no livro bíblico de Gênesis.

O mais curioso é que Merhige não parece querer dissuadir uma ideia da outra; o desenvolvimento sequencial das imagens pautadas em uma simbiose tresloucada parece querer perpetuar uma certa nobreza entre os dois espectros de pensamento, como se de alguma forma elas pudessem se completar. No final, ainda resta tempo para que uma figura (humana?) possa surgir do "pó da terra", buscando alcançar algum tipo de fonte anônima.
Pseudo-humanoide, surgindo misteriosamente.
Visualmente magnífico e com uma trilha-sonora impactante, Din of Celestial Birds é um curta experimental indelével. Filmado com o apoio da Q6 Film, grupo de artistas e filósofos, ele (o curta) se apresenta como um verdadeiro exercício de reflexão, onde as cenas (dotadas de uma psicodelia magnânima) montam um verdadeiro mergulho na incompreensão da vida. Genial... e que venha o terceiro!

sábado, 24 de setembro de 2016

Thriller Night #8: Polednice (2016)

Capa do filme.
Eis aqui um daqueles filmes que acabamos encontrando por acaso, ao visitar grupos e fóruns de cinema. O mais curioso é que entre os comentários que cercavam as discussões ao redor deste filme, a esmagadora maioria eram de teor crítico, desmerecendo o valor do filme, e foi justamente isso que atiçou minha curiosidade de assistir Polednice.

Isso sem contar com o fato de o título do longa me remeter ao belíssimo poema sinfônico homônimo de Dvorák e possibilitar aumentar o meu conhecimento raso acerca da cinematografia tcheca, que no momento é muito rasa.

A exemplo de Demon, este filme também incorpora elementos de sua cultura nacional, explorando mitos folclóricos de seu povo. Aqui é retratado (de forma bem discreta) a lenda de Poludnitsa.

Segundo a mitologia, durante a época da colheita, ela transita por meio aos grãos, no intuito de defendê-los. Caso alguém seja visto por ela trabalhando ao meio-dia, ela o assassina brutalmente. Por vezes, ela faz perguntas ao trabalhadores e os assassina, caso não receba a resposta que deseja. A lenda diz que Poludnitsa é responsável pelo desaparecimento de várias pessoas na colheita - especialmente crianças; e é aí que entra o filme.

Contudo, o mais interessante do filme não é nem mesmo o enfoque ao mito (que é - de certa forma - até pouco elaborado), mas a construção narrativa densa e progressiva que o enredo nos oferece. Contando com um drama bem planejado, uma fotografia belíssima e uma certa sensação de anóxia.
Mão e filha, sendo alertadas do perigo do aparecimento da Poludnitsa.
As atuações não são grande coisa, mas o roteiro bem trabalhado alivia as fraquezas de interpretação vividas pelos atores no longa. A atmosfera intensa pode não causar nenhum terror, mas provavelmente irá conseguir provocar sensações inquietantes no imaginário de quem o assistir. Primeiro filme do diretor Jiri Sadék, Polednice pode ser uma opção interessante na busca por um thriller psicológico bem construído.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Área Cult #4: O Substituto (2011)

Capa do filme.
Quando uma amiga me recomendou este filme com tanta empolgação e euforia, confesso ter ficado curioso. A narrativa simples que ela me apresentou me deixou intrigado com o porquê dela ter ficado em tamanho êxtase com esta pérola. Felizmente, quando pude assistir e conferir do que se tratava o filme, compreendi a excitação dessa minha amiga.

Contudo, a tradução do título me deixou um tanto quanto furioso, haja vista que o título original: Detachment, explicita de forma bem clara e objetiva o intuito do filme, enquanto a tradução soa como mais uma das tacanhas tentativas da indústria cinematográfica brasileira de tentar facilitar a experiência do espectador, mas que na realidade só atrapalha.

Mas afinal, do que se trata o filme? Aos olhos de uma pessoa desatenta, o filme pode soar apenas como um drama barato, mas por sob a camada dramática e densa há uma mensagem escondida: a crítica à expansão do desapego.

Logo no início, a epígrafe de Albert Camus já nos dá uma dica do que virá pela frente, nela se pode ler: "E eu nunca me senti tão imerso e ao mesmo tempo tão desapegado de mim e tão presente no mundo", sendo tal frase a base de construção do personagem principal, o professor interpretado por Adrien Brody, que surge como (talvez) o único interessado em educar os alunos e combater toda uma situação melancólica que lhe é confrontada durante o filme, ao mesmo tempo em que tem de lidar com seus traumas familiares e pessoais, transitando entre ambos os espectros como a recitar uma poesia.

Mas quando digo desapego, não restrinjo a ideia apenas às relações sociais que permeiam a convivência de todos nós como sociedade, mas também o desapego com o ambiente escolar, retratando a falência do ensino; o desapego com os valores que constituem a sociedade como um todo e o vazio existencial que nos acomete por não conseguirmos repor ou ao menos estruturar uma outra forma de organização moral; o colapso de toda uma geração, cada vez mais afundada em sua solidão e seus traumas.

Toda a atmosfera do filme gira em torno de uma sensação de asfixia, onde as pessoas estão cada vez mais desesperadas com a solidão e a dor que consome toda uma comunidade sem horizontes, como a parasitar em um cotidiano sem consequências. Cru e profundo, O Substituto é um verdadeiro ensaio sobre a vida, que resulta em muitas reflexões. Um filme grandioso e que vale a pena se conferir.

Trecho do roteiro extraído do filme: “Todos temos problemas, coisas com as quais temos que lidar, e todos nós levamos eles para casa de noite, e levamos para o trabalho de manhã cedo. Eu acho que tudo isso, essa impotência, essa constatação, esse mal presságio, estar à deriva em um mar sem boia nem salva-vidas, quando você achou que seria você quem jogaria a boia”.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Sem Mais Delongas #8: A delegação das responsabilidades.

(ou como a pedagogia do oprimido é opressora).


Um dos discursos que mais têm se propagado nos últimos tempos é a noção de que indivíduos são representados por grupos de pessoas com características em comum, sejam elas definidas por fatores inatos ou não. A proliferação de tais discursos resulta na animosidade que hoje presenciamos na sociedade em que vivemos, tendo eles - muitas vezes - um viés político-ideológico por trás.

A ideia de que pessoas - distintas e conscientes - possam ter suas concepções representadas por um grupo (ou movimento) é uma falha lógica. O cerne da liberdade resulta na individualidade e, sendo assim, a suposta "libertação" originária dessa "quebra de paradigmas" é que tolhe o real e magnânimo direito in natura de todo indivíduo: sua liberdade de pensar, falar e agir. Um verdadeiro acinte à qualquer tipo de aplicação lógica.

Todo indivíduo é um fim em si mesmo e, portanto, não é responsável por aquilo que um determinado grupo pensa, diz ou faz. Um indivíduo não responde por ações de um grupo e vice-versa. A negação dessa ideia é apenas um pretexto para que determinados coletivos de pessoas angariem compreensões diferentes para grupos diferentes. Sendo assim, tal separação da sociedade representa um ode à desigualdade, haja vista que a simples divisão de uma sociedade em grupos explicita a forma de tratamento direcionada à cada uma destas reuniões de pessoas.

Galgada na luta de classes Marxista, a pedagogia Freireana age como instrumento para forjar uma sociedade desmembrada e dividida, incitando o ódio entre determinados grupos com a intenção de perpetuar um status quo caótico, cada vez mais pujante e megalomaníaco. É a consumação básica da estratégia segregadora divide et impera, brilhantemente esquematizada por Sun Tzu em "A Arte da Guerra", e usada por diversas vezes no decorrer do período histórico.

Enquanto a disseminação de ideários odiosos entre os meios de comunicação e, especialmente, no meio acadêmico, prosseguir e se expandir, o direcionamento destes indivíduos se afastará cada vez mais de uma reformulação da situação vigente e haverá cada vez mais revolucionários de meia tigela,  que na prática servem à propósitos despóticos que se mostram cada vez mais suntuosos, formando uma grande massa de asseclas pedantes que parasitam em meio de conjecturas inócuas.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Dedo de Prosa #10: Deus Não Está Morto 2 (2016)

Capa do filme.
Quando fui apresentado a Deus Não Está Morto - em meados de 2014 - confesso ter ficado bastante intrigado com a proposta de um filme que trouxesse um debate acerca de religião e sua influência na sociedade e até mesmo a existência de Deus. A ideia de mostrar pontos de vista contrários, apontando prós e contras acerca do constructo (no caso em específico, do cristianismo) religioso, é extremamente tentadora. Aliado a isso, o título ainda fornece um fator propulsor brincando com a famosa máxima Nietzschiana: "Gott ist tot" (do alemão: "Deus está morto"), extraída de seu livro "A Gaia Ciência".

Contudo, quão grande foi minha decepção ao me deparar com um filme cujo cerne está centrado em um maniqueísmo barato, galgado em argumentações rasas e construído de forma totalmente tendenciosa.

Ou seja, se você - assim como eu - se interessou por Deus Não Está Morto por pensar que o mesmo buscasse trazer reflexões frutíferas e bem estruturadas logicamente, com o intuito de gerar uma discussão sadia, sugiro que você procure outras formas de o fazê-lo. Seja lendo livros que sejam ambientados na temática ou assistindo a debates relacionados ao tema. Sugiro aqui o debate entre o teólogo e filósofo americano William Lane Craig e o jornalista, escritor e crítico literário britânico Christopher Hitchens; seu tempo será melhor gasto.

Feito esse introdutório, é esquadrinhado neste segundo filme a repetição das mesmas características que fizeram o primeiro filme alcançar certo sucesso comercial, mudando apenas a ambientação dos acontecimentos do filme. Dessa vez, o enredo gira em torno de uma professora cristã que é oprimida pela diretora da escola por supostamente estar pregando em sua sala de aula.

O caso acaba indo para o tribunal, onde todas as argumentações (totalmente pueris) favoráveis e contrárias são apresentadas, fomentando o maniqueísmo com a construção de figuras estereotipadas, de ambos os lados. Concordante a isso, o processo de narrativa do filme ainda abre espaço para um transcorrimento do enredo de caráter catártico, culminando no final espúrio onde a revelação é mostrada.

Dito isto, é importante ressaltar que Deus Não Está Morto 2 funciona bem no que se propõe a fazer; ou seja, ser um filme de propaganda, que busca gerar um sentimento de culto; confirmando ideias previamente estabelecidas. Fora disso, o valor desse filme é irrisório. Conceitualmente patético e praticamente nulo em termos de técnica, Deus Não Está Morto é um dos maiores embustes cinematográficos do século.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Thriller Night #7: Incubus (1966)

Capa do filme.
Vendido por muitos como "o filme mais amaldiçoado de todos os tempos", Incubus é um dos grandes clássicos do terror na história do cinema, tanto pela sua indubitável relevância artística quanto por todas as numerosas tragédias e mitos envolvendo o longa.

Escrito e dirigido por Leslie Stevens, o filme conta a história de uma súcubo chamada Kia (Allyson Ames), um demônio em forma de mulher, que está cansada de seduzir pecadores e usa de sua ambição para alçar voos maiores, buscando enviar ao "Deus da Escuridão" a alma de homens nobres e virtuosos, escolhendo sua primeira vítima: Marc (Whilliam Shatner, em um dos de seus primeiros papéis no cinema).

Ao se deparar com dificuldades em seduzir, Marc, a súcubo é alertada por sua súcubo-chefe para ter cuidado com a força do amor e da bondade, não deixando que estas a dominem.

Quando Kia vê seu plano fracassar, ela resolve invocar um íncubo, espécie de espírito masculino especializado em seduzir mulheres, com a missão de seduzir a irmã de Marc, dando início a batalha pela alma dos mortais.

Impulsionado pela linguagem em Esperanto (língua artificial criada pelo médico e linguista polonês Ludwig Lazar Zamehof, por volta de 1887) usada na totalidade da trama, o enredo ganha um tom de ocultismo, muitas vezes reforçado pela fotografia em preto e branco e a atmosfera densa do filme, lembrando bastante o estilo de filmagem do Ingmar Bergman.
Kia, usando todo o seu poder de sedução.
A carga de simbolismos e o terror sugestivo da trama funcionam perfeitamente, como uma grande experiência lisérgica e onírica. Considerado por muitos pesquisadores como um filme feito de ocultista para ocultista, Incubus faz jus à sua fama de clássico cult e é - sem dúvida - um dos grandes filmes do gênero.
_____________________________________________________________________________

Curiosidades:

1. A cópia usada na pré-estreia do filme não apresentou som, tendo que ser providenciada outra às pressas momentos antes da sessão.
2. A atriz Ann Atmar, que faz o pepel da irmã de Marc, cometeu suicídio dias antes do filme estrear no cinema.
3. A filha da atriz Eloise Hardt, que faz o papel da súcubo-chefe, foi sequestrada e morta por um psicopata, dois anos após a realização do filme.
4. O ator Milos Milos, que interpreta o íncubo no filme, matou sua namorada, ex-esposa do ator Mickey Rooney, e se suicidou meses depois.
5. Meses após a filmagem do filme, os cenários usados foram misteriosamente incendiados.
6. Os produtores só conseguiram distribuir o filme comercialmente 30 após seu lançamento, pois os arquivos foram perdidos na Universidade da Califórnia. O filme só foi recuperado graças à uma cópia encontrada na Cinemateca Francesa, tendo sido restaurada em 1996 para VHS e posteriormente para DVD.
7. Nerine Kidd-Shatner, terceira esposa de William Shatner, morreu afogada na semana em que o filme foi lançado em DVD.
8. Em seu comentário para o DVD, William Shatner lembra de um incidente que ocorreu durante as gravações. Segundo Shatner, uma figura hippie aproximou da companhia, importunando as gravações. Shatner afirma que o elenco reagiu com certa hostilidade, o que acabou irritando o hippie, que em voz alta proferiu uma maldição sobre o filme.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Transgressividade #11: Nekromantik (1987)

Capa do filme.
Embora já tenha abordado o tema necrofilia no blog ao escrever sobre Necrophile Passion, volto aqui a traçar algumas linhas sobre o tema para falar um pouco deste filme que é um clássico indelével da cena underground do cinema.

Por mais que abordem a mesma temática, há uma diferença circunstancial entre Nekromantik e Necrophile Passion: a abordagem usada para retratar o enredo. Enquanto Necrophile Passion é galgado em reflexões existenciais em torno do protagonista, Nekromantik prima por uma visão mais poética dos seus protagonistas e do próprio (atroz) ato da necrofilia, com uma absurda profundidade psicológica.

Dirigido pelo alemão Jörg Buttgereit, o filme gira em torno de Robert Schmadtke (Daktari Lorenz) e sua namorada, Betty (Beatrice Manowski). Robert trabalha na empresa Joe Streetcleaning, que tem como função a remoção de cadáveres em locais públicos. Logo no início, podemos ver Robert voltando para casa após fazer a "limpeza" de um local com alguns órgãos dos corpos que encontrou, agregando tais partes à sua coleção (visivelmente recheada, com muitos potes de vidro cheios de formol para que os órgãos se conservem).

O filme transcorre, com o fator caótico da trama progredindo de forma substancial. Até que, eis que - um dia - Robert encontra um cadáver em decomposição em um pântano lamacento e dá um jeito de levá-lo para casa. Agraciados com a presença de tal exuberante figura, Robert e sua namorada estrelam uma (romântica?) cena de sexo, simulando um ménage à trois entre eles e o cadáver. A sequência de imagens são compostas de situações aterradoras, com um toque peculiar de beleza fornecido pela trilha-sonora.
Dando uma chupada gostosa no globo ocular do cadáver.
Após isso, ele continua a ir trabalhar, deixando sua amada com o 'presunto'. Contudo, nem tudo são flores e, de tanto Robert chegar atrasado ao trabalho, seu chefe se enfurece e o demite. Frustrada pela perda do emprego do namorado e por não ter mais essa via fácil de aquisição de cadáveres que Robert lhe proporcionava, ela resolve abandoná-lo, levando o cadáver junto com ela.

Com a perda do emprego e da namorada, ele entra em uma depressão profunda, não conseguindo obter prazer em mais nada. Ele assassina o seu gato, prendendo-o em um saco de lixo e arremessando-o contra a parece e depois toma um banho de banheira com o sangue do animal escorrendo em cima dele; mas de nada adianta.

Ele vai ao cinema assistir um típico filme slasher repleto de misoginia, que o acomete a ir atrás de uma prostituta. Encontrando uma meretriz de beira de estrada, ele a leva para o cemitério, mas não consegue realizar o coito, dando uma bela broxada. A moça ri de sua cara e ele - enfurecido - a estrangula, conseguindo - após tê-la matado - manter seu membro rijo e transar com ela. Só que após finalizar o "serviço", ele adormece ali mesmo e acorda no outro dia com o som do coveiro, que tem sua cabeça arrancada por ele com um golpe de uma pá.

Desiludido, ele volta para casa com sua disfunção sexual perante a vida. Sem mais alternativas, ele decide dar cabo de sua vida ali mesmo, praticando um harakiri, perfurando sua barriga com uma faca enquanto ejacula esperma e sangue por seu pênis ereto, em uma intensa cena de êxtase absoluto.

Apesar das cenas extremamente grotescas (em especial a agoniante cena de esfolamento de um coelho, que surge no meio do longa como uma resposta à origem dos desvios psicológicos do personagem), da pobreza de recursos estéticos e cinematografia rasa, Nekromantik traz em suas entrelinhas uma proposta de debate com relação a solidão; a falta de empatia com o próximo; a desilusão amorosa; o convívio em sociedade e - claro - o estudo de fetiches sexuais excêntricos.
_____________________________________________________________________________

Curiosidades:

1. O filme não contou com ninguém responsável pelos efeitos especiais, tendo sido filmadas as cenas com órgãos de animais.
2. O filme foi banido em diversos países por seu conteúdo amoral e transgressor.
3. A cena de esfolamento do coelho é real, tendo sido filmada em um criatório de animais.
4. Em 1991, 4 anos após o lançamento de Nekromantik, o filme ganhou uma sequência tão aterradora quanto o primeiro longa, dirigida pelo mesmo Jörg Buttgereit.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Sem Mais Delongas #7: O desinteresse pelo conhecimento e a desonestidade intelectual.

(ou como o mundo foi dominado por slogans).

A exemplo de "O debate e a "retórica" política (ou de como é fatigante ser respeitoso)", volto aqui a traçar algumas linhas sobre o caótico momento vigente nos discursos espalhados por aí. Falácias, muletas metafísicas, incoerências lógicas e muito mais.

É recorrente no meu cotidiano me deparar com muitos jovens espertos, especialmente na internet. Moços e moças que dedicam o seu dia a discutir problemáticas da nossa sociedade, sejam em questões sociais, políticas, econômicas ou até mesmo culturais. Isso é bom, sem dúvida. O problema não está na ideia em si, mas no discurso usado para defendê-la; na abordagem usada para corroborar com determinada ideia e até mesmo no arcabouço intelectual que aquela pessoa tem acerca do tema que ela mesma se propõe a defender.

Vivemos um mundo onde o jovem - sem generalizar - não se interessa pelo conhecimento. Adquirir sabedoria - na visão destes - não passa de um banal exercício mental. O bacana - nos dias de hoje - é ser esperto (como disse acima). Ter aquela resposta pronta em discursos mastigados que são muitas vezes empurrados para sociedade com uso de cooptação e proselitismo. 

Já não se pensa mais por si, hoje o cool é a defesa de agendas ideológicas. Adota-se toda uma estrutura de pensamento sem que essa seja minimamente perscrutada, incorporando um corpo que pode muito bem estar pútrido. Ser "mente aberta" - nos dias atuais - virou mera figura de linguagem; hoje o legítimo é a reprodução de slogans caricatos, que em determinado momento se apresentam para estes mesmos como dogmas incontestáveis.

Fruto disso, vemos a criação de muitos ídolos - sejam eles ideológicos ou figuras humanas - e uma massa de asseclas que os transformam em seres apoteóticos, inquestionáveis e de moralidade ilibada. Para isso, essa mesma massa age de forma desonesta, intelectualmente falando. Deturpam estatísticas para favorecer as suas visões, numa constante perpetuação da falácia do equívoco; atacam espantalhos ao serem questionados; violam princípios básicos da lógica e imputam aos seus "inimigos" rótulos pejorativos.

A "geração Wikipedia"¹ - que sabe de cor a página do site sobre algum tema, mas nunca se propôs a ler sequer um livro deste mesmo assunto - cresce absurdamente. O advento da internet e a interatividade proporcionada pelas redes sociais contribuiu para isso. A falta de ceticismo dessa juventude é algo assustador: dia a dia o cenário de jovens incapazes de formular um raciocínio coerente aumenta. 

O discurso que estes mesmos defendem parte de um processo raso e de um entendimento superficial. Aprofundar-se em questões complexas é necessário, ou se estará apenas proliferando achismos embasados em discursos rasteiros. Engolindo informações sem nem mesmo testá-las em um processo de falseabilidade. 

A cada dia que passa, tais pessoas se limitam a pensar de forma pequena, esquecendo todo o espectro gigantesco de ideias que um tema pode ter. Restringem até mesmo o acesso a informações que lhes são contrárias, ao invés de se proporem ao desafio de tentar martelar tais ídolos, mostrando como são ocos.

Até que ponto chegaremos se essa idiossincrasia escatológica se perpetuar de vez?
_____________________________________________________________________________

¹Não vejo problema nenhum em se usar a Wikipedia como ferramenta de busca, muito pelo contrário. Acho a ferramenta interessante e necessária. A questão não está no uso da ferramenta, mas na insistência em permanecer apenas nela; em não se buscar um maior acesso a informações sobre o assunto (o que gera uma alienação desmedida). Isso serve para todo o processo de aquisição de conhecimento, sendo a Wikipedia apenas um exemplo mais palpável.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Thriller Night #6: Demon (2015)

Capa do filme.
A exemplo de A Bruxa, essa produção de terror polonesa também traz uma abordagem artística e menos caricata do que encontramos por aí no mainstream do meio cinematográfico. 

Além disso, o longa incorpora elementos culturais da sociedade polonesa, o que contribui em muito para um tom de classicismo que permeia boa parte do enredo de Demon.

Último filme do diretor polonês Marcin Wrona - que morreu pouco antes do filme estrear no seu país de origem (que depois veio a ser declarado pela polícia como um suicídio por enforcamento) - Demon traz uma interpretação do mito judaico dybbuk, que no filme se manifesta como um espírito que invade uma festa de casamento.

A história gira em torno de Piotr e Zaneta, casal que está prestes a se casar. Vindo da Inglaterra para morar com sua futura esposa, Piotr descobre - ao cuidar do solo - uma porção de ossos enterrados, que parecem ser o ponto inicial de uma série de acontecimentos estranhos. 

Conforme tais acontecimentos vão sendo mostrados, os pais da noiva começam a fazer os convidados beberem, para que eles não lembrem de tais acontecidos. Ao mesmo tempo que isso ocorre, os diálogos do longa começam a se tornar mais ambíguos e ininteligíveis, como que se o diretor quisesse provocar aos seus espectadores o mesmo sentimento de vertigem dos convidados da festa.

Com o transcorrimento do longa, as evidências de um suposto espírito na festa começam a se tornar mais fortes, mas em nenhum momento o diretor deixa de lado a interpretatividade da narrativa, que permanece com o filme até o final. Demon oferece um tipo de justaposição em que se pode ter tanto uma interpretação mística quanto lógica dos fatos ocorridos, tudo isso fortalecido pelo enigmático final do filme.

Agraciado com uma ótima atuação do ator israelense Itay Tiran e uma fantástica trilha-sonora composta pelo igualmente fantástico músico erudito Krzysztof Penderecki, também responsável pela trilha-sonora de filmes como O Exorcista (1973) e O Iluminado (1980), Demon é mais uma grata surpresa do gênero em meio a tantas produções tacanhas da contemporaneidade.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Dedo de Prosa #9: Invocação do Mal 2 (2016)

Capa do filme.
Quando se fala em sequências de algum filme, é praticamente inevitável que haja uma comparação com os filmes predecessores do longa que está sendo lançado. No caso de "Invocação do Mal 2", a qualidade deste segundo filme não altera muito para com a do primeiro.

Graças ao seu - eficiente - diretor (James Wan), o filme consegue desempenhar um papel que não beira o vexatório, com uma técnica - a cada filme - mais apurada, enquadramentos mais elaborados e jogos de câmera precisos, que contribuem para a consolidação da tensão do filme. Tudo impulsionado por um roteiro bem escrito.

Contudo, mesmo com todos estes aspectos técnicos favoráveis, a trama não empolga. A abordagem usada para contar o filme é batida e inteiramente cheia de clichês - o principal defeito de James Wan.

O uso de jumpscare barato (já característico das produções contemporâneas) e as atuações medianas atreladas ao clímax mal trabalhado fazem com que o resultado do filme não seja lá grande coisa.

Mas a despeito de tudo isso, ao término do filme pude constatar um fato: por mais que tal fórmula de fazer cinema de terror seja batida, repetitiva e desgastada, ela ainda agrada a muitos. Os aplausos da maioria no final da sessão em que fui não me deixam dizer o contrário. 
Janet sendo incorporada pelo demônio Valak.
É a constatação do que venho dizendo há tempos: por mais que essa embalagem mercadológica de se fazer cinema esteja saturada, a indústria encontra nessa patuleia um nicho de consumidores que garantirão o seu 'trocado', mesmo com produções de qualidade questionável e (por muitas vezes) de baixo orçamento. É a assertiva sintomática de uma indústria em decadência.

domingo, 22 de maio de 2016

Thriller Night #5: A Bruxa (2016)

Capa do filme.
Antes de assistir A Bruxa, tenha em mente o seguinte: este filme traz uma abordagem bastante diferente do padrão batido das produções de terror contemporâneas. Assista-o com esse pensamento e entenda o porquê de A Bruxa estar sendo disseminado como um filme de "terror artístico".

Diferentemente das encaixotadas abordagens do terror contemporâneo (alô, James Wan!), A Bruxa prima pela premissa de usar o oculto como força na narrativa, e é justamente aí que está o maior mérito da trama. 

Como a própria capa do filme (imagem ao lado) sugere: "o mal assume muitas formas", a sombriedade que impera no filme não tem um fator primário explícito. O poder sugestivo do filme ocasiona uma experiência sinestésica muito mais arrebatadora do que se possa imaginar.

O clima claustrofóbico da película está altamente ligado à fotografia cinzenta (melancólica e inóspita) e a trilha-sonora angustiante (precisa e sem usar do exagero gritante para causar sustos fajutos). A narrativa do filme possui uma atmosfera pessimista e visceral, resultando em um transtorno psicológico que domina do início ao fim.

Black Phillip, uma das possíveis/prováveis formas do Mal.
Além de tudo isso, o filme ainda abre espaço para um debate com relação ao papel da sexualidade feminina e as restrições religiosas impetradas pela Igreja na época. Os diálogos se transvestem em uma crítica ao fervor religioso desacerbado que ainda impera em muitas civilizações modernas, ressaltando que mesmo um grupo de pessoas extremamente devotas podem esquecer os preceitos bondosos de um suposto Deus e até mesmo abandoná-lo... se é que existe tal divindade.

E tudo isso culmina em um desfecho com um clímax maravilhoso. Sua tensão e obscuridade narrativa são um alento para todos os fãs que já estavam saturados do uso de artifícios batidos como o jumpscare barato e o didatismo narrativo. Praticamente impecável, A Bruxa - um dia - se tornará um grande clássico do gênero.

domingo, 1 de maio de 2016

Dedo de Prosa #8: Capitão América - Guerra Civil (2016)

Capa do filme.
Capitão América: Guerra Civil não poderia chegar aos cinemas em momento mais oportuno. Em um mundo dominado por polarizações, Guerra Civil chega para agregar mais uma disputa ao emaranhado de guerras ideológicas e físicas que tomam o mundo.

E é - talvez - por ter uma abordagem tão fascinante do ambiente vivido pelos personagens que o filme se sobressai. As telonas não exibem apenas um filme, mas um embate galgado em questões filosóficas como moralidade e altruísmo. Tudo isso ocasionado devido a um roteiro tremendamente preciso e uma narrativa densa e profunda.

Mas afinal, quem está correto no conflito? O Homem de Ferro, que aceita sofrer certas restrições no que concerne às atitudes dos heróis com relação a humanidade; ou o Capitão América, que considera ultrajante tais mordaças às pessoas que tanto fizeram pelo bem-estar da humanidade?

É completamente perceptível que - olhando friamente - a ideia de que ambos os lados defendem proposições "corretas" e com argumentos razoáveis se manifeste como opção mais palpável. Uma lição para nossas vidas, se encararmos com esse espírito.

Mas ao que concerne o filme em si, não há muito do que reclamar. O filme transcorre de forma coesa e dá espaço para que praticamente todos os personagens tenham "momentos de holofote" em cena, não desqualificando a importância dos coadjuvantes da trama. A desenvoltura dos atores com o papel que desempenham é bastante satisfatória e proporciona ao expectador muitas cenas marcantes (muitas de teor cômico, protagonizadas especialmente pelo Homem-Aranha e o Homem-Formiga).

A sensação que passa é que finalmente a Marvel fez um filme maduro, com uma temática interessante e uma abordagem responsável e intrigante. Eu - que sou declaradamente um crítico voraz à masturbação cinematográfica deste meio que envolve os super-heróis - me sinto grato pela surpresa que o filme me causou. A expectativa é que de agora em diante a Marvel não perca a mão e volte a fazer coisas tacanhas como "Os Vingadores 2: A Era de Ultron".

sábado, 30 de abril de 2016

Transgressividade #10: Dans Ma Peau (2002)

Capa do filme.
Antes de iniciar o texto, é importante ressaltar que o fator transgressor de Dans Ma Peau não está necessariamente ligado a estética e sim no poder de sugestão do filme, naquilo que está oculto; fazendo prevalecer uma abordagem vertiginosa que angustia na maior parte dos momentos.

O enredo centra-se em Esther (Marina de Van, que também assina e dirige o filme), mulher que após sofrer um acidente grave na perna (e não ter percebido o ferimento, até ver o sangue manchando o chão) começa a criar um tipo de obsessão por seu corpo e, mais precisamente, sua pele.

Não há como afirmar categoricamente que este acontecimento é o propulsor de todo o distúrbio masoquista que é acometido na personagem ao decorrer do filme. Contudo, em todas as cenas onde Esther se sente impulsionada a se auto-mutilar, é possível perceber certas características em comum.

É constantemente presente no filme - especialmente nas cenas onde a personagem se sente impelida à mutilação - uma sensação de vertigem com relação ao seu exterior. Um desconforto estressante ocasionado pelo automatismo das ações humanas.

A expressão de Esther frente ao mundo que a cerca é reflexo de um mundo dominado pela futilidade, onde toda a significância de algo é abstrata. Para fugir dessa realidade, ela se cobre com um 'manto de confortabilidade', onde sua pele representa a evasão da realidade. Os cortes que provoca a si mesma são uma tentativa de "cutucar a ferida", não apenas no sentido corporal, mas as feridas de uma existência sôfrega e depressiva.
A expressão do êxtase pelo fio da faca rente à pele.
Por mais que Dans Ma Peau não seja um primor cinematográfico e as atuações não sejam lá muito boas, o filme ganha mérito por sua abordagem intimista e excêntrica (como é de costume dos franceses). O roteiro não é genial, mas obtém sucesso naquilo que se propõe a fazer. Uma boa escolha para fugir do comodismo.