segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Dedo de Prosa #12: Star Wars: Rogue One (2016)

Capa do filme.
"A força está comigo e eu estou unido à força."

Quer você goste ou não de Star Wars, uma coisa é inegável: a franquia representa um verdadeiro fenômeno no meio cinematográfico. A capacidade do arcabouço narrativo que envolve Star Wars e seu universo é algo simplesmente inenarrável e Rogue One é apenas uma amostra do que está por vir.

É claro que a ausência das figuras caricatas dos filmes tradicionais podem provocar um certo olhar de esguelha aos fãs mais ortodoxos, além de que os protagonistas destes filmes não são o fator propulsor da trama, o que consequentemente não lhes abre tanto espaço para desenvolver suas histórias de forma mais profunda. Mas isso já provou não ser um empecilho para a construção de uma história bem feita em "Star Wars VII: O Despertar da Força" e, novamente, mostrou não ser um obstáculo para os produtores nos presentearem com mais esta pérola.

A despeito disto, as atuações em nada comprometem o enredo e, arrisco dizer, soam bem mais verdadeiras ao produzirem essa separação entre a construção de seus personagens e o desenvolvimento da trama como produção de si mesma. Trama essa que, inclusive, é uma das mais bem definidas da franquia, pois soube estabelecer um roteiro que permitisse ao enredo fluir de forma objetiva, sem entregar informações demais ao espectador na intenção desesperada de estabelecer o seu lugar em um determinado universo cinematográfico (como ocorreu em "Batman vs Superman").

Mas além de tudo isso, o maior mérito de Rogue One é ter conseguido estabelecer, de forma magistral, uma linha cronológica entre os episódios III e IV. A premissa retirada dos letreiros iniciais do quarto episódio se mostra efetiva nas mais variadas ordens, sabendo equilibrar os aspectos técnicos e estéticos que transitam entre estes dois filmes. Embora Rogue One tenha um caráter muito mais característico de um filme de guerra, ele abarca de forma mais profunda as nuances da trama, esmiuçando os detalhes narrativos que incorporam o trajeto da missão retratada no filme. Pode não possuir exatamente um ar de aventura, como os episódios clássicos possuíam, mas ainda possui o tom de urgência, aqui ainda mais iminente, perante o aumento de poder do Império.

Faço do respeito de Gareth Edwards e sua equipe pelo que a trilogia clássica representa, o meu sentimento ao assistir este filme. O primor técnico com os efeitos especiais e os demais aspectos técnicos e sonoros são fantásticos e a construção do filme, sabendo ligar a inevitabilidade do ataque à Estrela da Morte pela Aliança Rebelde aos resultados do que vêm a seguir em Uma Nova Esperança, são reverenciáveis. Talvez também seja isso que o filme busque: nos provocar uma nova esperança. A esperança de que Star Wars ainda tem muito para oferecer e que a revolução, tanto na ficção narrativa quanto na cinematografia do que constitui o universo da franquia, se baseiam em uma verdadeira esperança, tão forte quanto a crença de Chirrut.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Sem Mais Delongas #13: O otimismo parasita.

(ou como a covardia também pode ser nobre).


Muitas são as dicotomias que com o curso histórico ganharam significados qualitativos: Céu e Inferno; beleza e feiura; positivo e negativo; claro e escuro; entre outras. Não muito diferente destas, evidenciou-se uma dicotomia um tanto quanto curiosa (e talvez uma das mais deturpadas) que pudemos presenciar: o otimismo como um aspecto de virtuosidade e o pessimismo como um tipo de corrupção psicológica e/ou social.

É estranho, a priori, pensar que os valores de tais proposições possam estar invertidos, mas uma reflexão mais profunda sobre as mesmas podem produzir resoluções que se dissociam desse senso comum. Filosoficamente, a realidade (e a existência humana, como objeto de investigação de si mesma) produziu uma percepção de que o mundo é um lugar de sujeira, onde a crueldade e o egoísmo são o cerne do funcionamento de uma vida em sociedade. O pessimismo, sob estes aspectos, seria apenas uma corroboração com o cenário no qual todos nós fazemos parte, seja direta ou indiretamente.

Já de caráter um tanto catártico (e absurdamente sofismável), o antagônico otimismo se apresenta como uma válvula de escape à toda essa noção de realidade desgostosa e misantrópica que se moldou com a produção da história do pensamento humano. Apresentando-se como algo lisérgico, toda a noção do otimismo está interligada - quase que integralmente - ao poder de se deixar enganar, se omitindo da realidade que nos cerca; o que é muito semelhante ao efeito de um entorpecente.


A existência é, por si própria, sofrida. O ser (ou existir) é a causa primeira do sofrimento, pois existir é querer (ter vontade) e, em consequência disso, querer é sofrer. É como um pêndulo que está em um estado de desejo e balança até alcançar um estado de saciamento desse desejo, até voltar ao estado primário, onde se volta a querer. Ilustra-se, assim, que a predisposição básica da existência - por ela mesma - é pessimista, pois o saciamento do desejo (felicidade) é apenas uma escala que fomenta a busca por outros desejos (vontades).

Tendo dito isto, o que se configura instintivamente é que um otimista, por sua natureza ilusória, é um covarde. Um covarde, pois aceita trair o próprio exercício ontológico ao assumir uma postura em que as coisas são naturalmente belas e genuínas. Um covarde, pois nega que as oscilações de momentos de gozo e de melancolia aconteçam por estas serem apontamentos manifestos de distorções de um estado de tristeza, onde se está ganhando uma potência de agir que impulsiona um estado de satisfação pessoal.
"Melancolia I" (Albrecht Dürer, 1514).
Contudo, a despeito de tudo isso, é também inegável que a busca por felicidade é - e continuará sendo - uma das grandes aventuras pela qual a existência passa(rá). Assim como esse parasitismo do otimismo é covarde por fraudar a sua própria natureza, ele também é nobre, pois na profundidade de sua concepção, ele fornece - ainda que ilusoriamente - ferramentas para uma luta (muito provavelmente) invencível.

A vida é uma senoide e as variações sensoriais pertencentes à ela são praticamente inevitáveis. O padrão correspondente ao parâmetro de comportamento desta tenderá a ser decrescente, pois toda a gênese da problemática funciona como uma balança, onde um peso é maior que o outro e onde, simbolicamente, essa situação mudará de figura com o impulso de um agente externo, alterando a realidade por um período momentâneo e depois retornando ao princípio magnânimo da existência. O pessimismo é resiliente, o otimismo é utópico. Fora isso, a vida é apenas um exercício de investigação árduo e sem sentido.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Área Cult #6: Sob o Sol de Satã (1987)

Capa do filme.
O primeiro filme francês que eu tive o prazer de assistir (e um dos primeiros "filmes de arte" que vi), essa adaptação cinematográfica do livro homônimo de Georges Bernanos, vencedor da Palma de Ouro, é uma das obras mas simbólicas que retratam temas como espiritualidade e mergulham na profundidade de suas nuances.

Diferentemente do resto da cinematografia do Pialat, muito mais escrachada e crua, esse filme é pautado por uma linguagem um tanto mais romanesca (entenda por romantismo a acepção da palavra em sua origem, não a medíocre compreensão contemporânea que o termo acabou ganhando), muito por conta dos diálogos ásperos e, por vezes, filosóficos, que acometem os personagens da trama, isso sem contar o belíssimo jogo de luzes e sombras que o filme apresenta.

Mas como Pialat, um cineasta que sempre buscou retratar da forma mais fria os dilemas da existência humana e sua realidade melancólica, pôde fazer um filme de cunho profundo e, em muitos momentos, largando de mão a imanência que sempre imperou em seu tato cinematográfico? Simples, ele não largou. Pelo menos, não integralmente.

É óbvio que a acuidade visual com o mise-en-scène e os traços mais suaves adotados por Pialat nesse filme diferem daquilo que o caracterizou, mas a essência daquilo que ele teve como característica permanece. É bastante comum pensarmos que a abordagem da história gire, simplesmente, em torno dos problemas metafísicos que o Padre Donissan (Gérard Depardieu) tem com relação ao seu posto de pároco e os dilemas religiosos que ele sofre, sendo tentado por "Satã". Tudo isso traduziria uma desconexão radical do jeito Pialat de ser, mas basta que se olhe atentamente à trama paralela de Mouchette (Sandrine Bonnaire) e se compreenderá o fator propulsor da trama: o desespero.

Ambos, Donissan e Mouchette, tem em suas tramas uma sensação de agonia perante aquilo que lhes cercam, seja com relação aos aspectos religiosos que transitam por entre a introspecção filosófica do padre ou a agonia existencial da moça resultante de suas relações amorosas mal resolvidas. Embora de características de personalidade extremamente distintas, que fica evidente na cena em que os dois se encontram, a jornada vivida por ambos é uma idealização trágica de existências atormentadas, completamente sem horizontes. Mouchette chega, até, em um momento do diálogo vivenciado pelos dois, a proferir que "Deus é uma piada. Deus não significa nada."
Padre Donissan, peregrinando.
Já o "Satã" do filme é uma figura emblemática. Ainda que representada por uma figura humana, sua condição narrativa é muito mais ampla que a simples teatralidade de algo puramente estético e físico. Satã, aqui, ganha uma conotação investigativa, onde a busca por uma identidade é tratada como efeito resultante de uma força gerada por este primeiro. As camadas interpretativas dos personagem explicitam a mensagem, quando são, paulatinamente, levados por esse processo de perscrutação e corroídos pelo "sol de Satã".

A intenção que vejo em Sob o Sol de Satã é retratar - ainda que de forma intencionalmente vaga, o que acaba deixando um certo ar de mistério no ar - uma certa imprevisibilidade comportamental de nós, humanos, frente a ameaça de inexistência de um significado maior, seja ele de caráter metafísico ou não. A metafísica e o empirismo se coadunam em um sincretismo fantástico, de modo a retratar vidas destroçadas pela religião e pelo mundo. É uma demonstração de como pessoas podem sucumbir perante a perda de sua essência, constituída com tamanho afinco e acuidade. Faz-nos perceber como, por mais fortes que sejamos, podemos nos deixar consumir por um "Satã".

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sem Mais Delongas #12: A hegemonia das virtudes.

(ou como a omissão do contraponto forma uma espiral do silêncio).


Uma das curiosidades do século XXI é a ascensão dos social justice warriors e sua compreensão de mundo coletivista (leia mais aqui). Mais curioso ainda é o modus operandi e as consequências psicológicas e sociais que esse tipo de concepção de mundo acaba gerando, tornando tudo em uma grande engenharia social. Ironicamente, são esses mesmos ditos defensores da igualdade que mais ferem o princípio da isonomia.

Com o sucesso desses coletivos, cresceu uma visão onde essas assertivas representam praticamente uma seita, onde a acepção de tais ideias representa um sentimento de superioridade vinculada a uma "bondade"; uma auto-percepção orgulhosa de defender algo que se tem como nobre. Para fomentar ainda mais esse discurso, a mídia faz uma massiva difamação de todas as linhas de pensamento que não se aliem ao senso comum. Toda essa canalhice gera, paulatinamente, uma completa aversão aos indivíduos que não se posicionem ordeiramente como gado.

Esses comportamentos - muitas vezes - são estimulados pela falta de interesse em se desafiar a compreender outras formas de enxergar o mundo. A omissão de uma posição contrária forma uma espiral de silêncio, onde aqueles que se posicionam 'contra a corrente' se calam, para não serem perseguidos por suas opiniões, enquanto os ditos defensores da igualdade se agigantam como grandes juízes da história; os representantes de um messianismo tacanho e coercivo.

Resultado disso, temos categorizações grotescas de indivíduos que, por terem uma determinada característica, são achincalhados por esses asseclas de uma ideologia imbecilizante; um acinte à todo tipo de compreensão humanitária e sensibilidade para com o próximo. É uma completa ironia que esse tipo de patrulhamento venha logo daqueles que se dizem tão preocupados com o bem-estar dos outros. Além disso, essa postura também compreende uma aceitação social que alimenta e engrandece o ego destes que a defendem. Afinal, quem não quer se sentir bem perante os seus pares?

A grosso modo, a própria terminologia social justice é contraditória por si só. Justiça é um sistema de eliminação de conflitos entre indivíduos. Como pode um sistema ser justo se ele parte do pressuposto que a sociedade é constituída por grupos e não indivíduos? Como pode um indivíduo ser desfavorecido - devido a uma noção histórica - por algo que ele não cometeu e isso ainda ser chamado de justiça?

Ainda se poderia considerar a ideia da famigerada Justiça Social, caso ela respeitasse o conceito com a qual ela supostamente estaria coligada. Infelizmente, o panorama que se configura empiricamente é muito diferente daquele que se idealiza e tal arremedo de pessoas servem apenas como instrumento de manobra para facilitar o engrandecimento de um órgão central, que se beneficia como sendo uma suposta "solução" para os problemas envoltos à desigualdade; o que acaba gerando um enorme círculo vicioso, pois todo esse processo acarreta em mais desigualdade e mais pessoas acabarão reivindicando mais intervencionismo, que acabará gerando mais desigualdade. Vira tudo uma bola de neve, até o colapso social.

Falta um pouco de bom senso em toda essa discussão. Enquanto se permanecer com essa concepção cultural de que coletivos oprimem outros coletivos, se está perdendo o foco dos reais problemas que indivíduos têm na sociedade. Esse instinto ególatra de 'apóstolos da história' apenas sucumbe e segrega a todos nós, transformando todo o processo de discussão dos problemas em uma pilhéria. Foquemos nossas forças em compreender e tentar solucionar as raízes empíricas das situações sociais e não em inferir injúrias aos outros. Só assim poderemos formar uma sociedade equilibrada.