sexta-feira, 28 de abril de 2017

Sem Mais Delongas #17: A sociedade, o comportamento e o Narciso.

(reflexões sobre a ética como juízo de valor).


Muito já foi escrito sobre como deveria ocorrer o funcionamento do comportamento humano, seja individualmente ou socialmente. Dada esta realidade histórica do pensamento e a construção inenarrável de sociedades baseadas em imperativos categóricos, foi possível observar a transformação das interações interpessoais em instituições sociais que erigem a estabilidade das mesmas. Contudo, tal produção de concepções se perverteu em preceitos normativos insustentáveis logicamente, haja vista que não é possível se extrair preceitos descritivos que determinem um sistema de ética, sem que haja uma distinção entre as concepções do dever com o ser.

Toda proposição normativa tende a ser produzida de modo a refletir compreensões narcisísticas de mundo, pois presume que a prescrição de moralidade reside essencialmente da relação comportamental do indivíduo como um fim em si mesmo. Esta anátema promulgadora de determinados métodos de enxergar a realidade humana produziu uma consciência coletiva de que os escopos da razão são irrefragáveis, dando ao debate um tom altamente ególatra e que, muitas vezes, descamba para a antinomia.
"Metamorphosis I" (Escher, 1937)
A priori, subjugamos o instinto compulsório de nossas vontades a fim de quantificar as diretrizes morais que uma sociedade deve ter, mas com isso retornamos ao problema inicial dos imperativos categóricos e sua fraqueza perante uma avaliação cética, como Hume a guilhotinar tais ídolos.

O indivíduo é parte central da construção das compreensões morais de uma sociedade, sendo um sistema de ética unicamente justificável quando postulado de modo a refletir valores que se justificam per si, como os direitos naturais propostos por Locke em “Segundo Tratado Sobre o Governo”. Contudo, tal visão sempre é tomada de modo a suscitar a ideia de um subjetivismo exacerbado, como se a gênese daquilo que caracteriza o comportamento humano residisse apenas em suas vontades e/ou prazeres, o que resulta em ideias como a do utilitarismo.

Ayn Rand, em “A Virtude do Egoísmo”, demonstrou brilhantemente como a percepção de que a ética tomada como princípio de devir tende ao paroxismo, haja vista que a arregimentação destes princípios como base da ética incorpora um estado de organização social que, muitas vezes, acaba legitimando a violência, física ou psicológica, daqueles que possam não concordar com as ações de um indivíduo, podendo esta violência ser originária tanto de uma pessoa quanto de alguma instituição social e/ou política.

Sendo assim, pode-se perceber que a natureza intrínseca daquilo que constitui a ética de uma sociedade não reside unicamente em preceitos subjetivos ou objetivos, mas que são moldados a partir de caracterizações auto-evidentes. Foi o exercício ontológico proporcionado pelo processo de transformação da práxis humana que nos permitiu compreender as relações de comportamento da humanidade. 

Logo, ressalta-se o quanto é importante que nos sujeitemos ao julgamento, pois a partir do mesmo que o debate público sobre a ética, no decorrer da história, permitiu a fundamentação da compreensão das civilizações contemporâneas. Talvez mais importante que qualquer sistema de ética, a perversão do comportamento em algo que esteja imune aos julgamentos, seja a grande questão contemporânea. É mais um dos absurdos mitos que o nosso Narciso produziu e que, indubitavelmente, visa a ocultação do seu real intento: o caos social.

sábado, 15 de abril de 2017

Dedo de Prosa #14: Velozes e Furiosos 8 (2017)

Capa do filme.
Existem alguns fatos que são visíveis para todos. Talvez o mais evidente deles é o tamanho do significado que a franquia Velozes e Furiosos tem para a história da cinematografia mundial. Repleto de conceitos filmográficos revolucionários, sempre com um roteiro extremamente filosófico e profundo ao investigar a natureza humana, com um zelo técnico absurdo no tratamento dado aos enquadramentos e os jump-cuts sempre muito bem colocados e, especialmente, com um compromisso irrefragável com a coesão com a realidade, sempre retratando situações totalmente factíveis e com nexo.

A atuação dos atores, que aparecem na tela como um conjunto de professores a ensinar para os seus colegas de Hollywood como se atuar, é primorosa. A riqueza do mise-en-scène é tamanha que fariam produções clássicas do cinema da Nouvelle Vague se prostrarem em reverência ao imenso acervo de nuances interpretativas que os gênios da interpretação que fizeram este filme têm.

A produção contínua dos diálogos - extremamente herméticos, dada a complexidade dos assuntos tratados - aliada a uma trilha-sonora minuciosamente escolhida - como uma mistura de tons do classicismo dramático de Wagner com a limpidez romântica de Chopin - e, para encerrar com chave de ouro, uma fotografia que produziria arrepios ao Malick, é algo que marcará para sempre o cinema.. Tudo isso, composto numa narrativa épica com toques de tragédia grega, produz uma sinestesia sem precedentes aos seus telespectadores, comprovando como a franquia se estabelece como um divisor de águas para a produção cinematográfica no mundo.

Mas agora falando sério (e espero, sinceramente, que você tenha percebido o sarcasmo das palavras ditas anteriormente), a fórmula seguida por Vin Diesel e sua trupe já não é segredo de ninguém. As repetições dos mesmos clichês são vomitadas na sua cara sem a menor vergonha. Dessa vez, tentando provocar um twist diferente, os produtores buscaram fazer com que o próprio Dom (Vin Diesel) fosse o agente questionador daquilo que constituiu a franquia (e que é repetido ad aeternum sem o menor pudor): a família.

Colocando caras novas no elenco (como o fraquíssimo Scott Eastwood, a coroa mais linda e talentosa do mundo: Helen Mirren, o - para mim - mal aproveitado Kristofer Hivju e a deslumbrante Charlize Theron) e fazendo com que alianças nada prováveis, como a de Hobbs (Dwayne "The Rock" Johnson) e Ian Shaw (Jason Statham), ocorram, o filme tenta desvirtuar um pouco da logística da narrativa. Pra contribuir, o filme ainda traz à tona figuras carimbadas de longas anteriores, como a policial Elena (Elsa Pataky).

Contudo, nem mesmo a revolta de Dom (Vin Diesel) é capaz de produzir uma mudança significativa na linha de raciocínio dos produtores e roteiristas da franquia. Até mesmo os alívios cômicos oferecidos por Roman (Tyrese Gibson) estão presentes como função narrativa indispensável para a casca do funcionamento do enredo, que já é do conhecimento de todos.

Há tempos que Velozes e Furiosos perdeu aquela essência dos rachas e da cultura de rua dos carros fodelásticos, se transformando em uma franquia de ação compromissada apenas com o entretenimento do público em ver tiros, porrada e bomba (como diria uma pensadora contemporânea (sic) por aí). Mas vou além, pois algo ficou claro com este oitavo filme: para além da ação, a franquia é também uma produção extensa de aventuras, onde um grupo assume a responsabilidade de vencer a "batalha". No quinto filme o inimigo era Hobbs (Dwayne "The Rock" Johnson), no sexto era Owen Shaw (Luke Evans), no sétimo era Ian Shaw (Jason Statham) e neste oitavo temos Charlize Theron (Cipher), mas em todos eles se percebe a criação de toda uma problemática a ser resolvida.

Seja como for, é o que já disse algumas vezes: a opção em assistir mais um filme da franquia é rigorosamente nem um pouco ligada à técnica. Afinal, é justamente o apelo comercial e o imaginário popular que impulsionam o sucesso da franquia. Se você é como eu e aprecia películas em que o contexto narrativo tem função exclusiva de entreter, então não se importará de ver mais uma sucessão de carros quebrando, bombas explodindo e porrada comendo. 

É justamente essa suspensão de descrença que marca o fervor que muitos (e me incluo nisso!) ainda têm pelos filmes de Velozes e Furiosos, afinal ninguém é de ferro e às vezes é necessário algo mais light do que a verborragia conceitual de cineastas mais complexos. Para esse alívio que existem franquias como essa e, talvez por isso, que a gama de espectadores permaneça tão fiel ao que esta representa, sempre mantendo esse entretenimento como fator primordial na produção dos filmes. Talvez a família, de que Dom (Vin Diesel) e sua turma tanto falam, sejamos nós. Resta apenas saber se realmente não abandonaremos essa família.

domingo, 2 de abril de 2017

Dedo de Prosa #13: Fragmentado (2017)

Capa do filme.
"Os afligidos são os mais evoluídos."

Eis aqui, definitivamente, meus respeitos ao que Shyamalan pode representar para o cinema contemporâneo. Eu já havia ressalvado, em "A Visita", uma possível volta por cima na carreira do diretor, mas foi com Fragmentado que o indiano provou sua capacidade como cineasta e produziu seu melhor filme desde "O Sexto Sentido".

É claro que ao se falar em sua filmografia, não se pode deixar de lado as características que tanto o marcaram: a relação de imanência e metafísica que acompanham suas narrativas; os dilemas psicológicos que acometem os personagens ou até mesmo os enquadramentos não-ortodoxos que marcaram sua carreira. Contudo, há uma mudança significativa no tratamento deste longa (e que também esteve presente no seu filme anterior): o cuidado em não se limitar à produção forçada de plot twists.

Fragmentado começa como um simples thriller: um homem, aparentemente traumatizado, rapta três garotas e as prende em um tipo de sótão localizado em um lugar anônimo. Com o desenrolar da trama, são mostradas as nuances que percorrem a trama: o transtorno dissociativo de identidade (TDI), vivido por Kevin (James McAvoy) e os traumas de vida de Casey (Anya Taylor-Joy).

Com o manifesto de algumas das 23 personagens de Kevin - Dennis, um psicopata com TOC (transtorno obsessivo compulsivo), que gosta de ver mulheres nuas dançando pra ele; Barry S, um estilista extrovertido; Hedwig, uma criança ingênua; Patricia, uma maníaca controladora - e a aparição da Dra. Fletcher (psicóloga de Kevin), uma Luz(!) nos abre os olhos: o sofrimento.

Imagine-se em uma jaula, preso; na companhia de outras 22 pessoas, que podem ser outras ou não. Imagine que a sua realidade seja uma simbiose de noções inequívocas de uma realidade decadente, onde uma simples abstração pode significar a ruína de todo um ser. Há um momento em que a fuga desta verdade é simplesmente irrefreável e não há nada a se fazer, a não ser trabalhar um rito catártico. A única alternativa é libertar esta Fera, trajada de ódio e vitalidade. A transmutação de todos os valores em sua excelência!

Sem controle. Não há escapatória para a humanidade. Apenas a experiência de confrontar a realidade, tal como ela é, pode lhe proporcionar uma chance. Pois, antes de tudo, é a dor da existência que nos permite diferenciar os fortes dos covardes. A mesma dor que permite, na individualidade de cada ser, saber se conseguiremos nos exultar, ultrapassando a nós mesmos.

Tudo isso (e muito mais!) é realizado de forma magistral, dado o zelo técnico do diretor e as brilhantes atuações do (para mim, subestimado pela indústria) James McAvoy - que consegue transformar cada detalhe de sua atuação em um ponto-chave para o entendimento de cada personalidade - e da magnífica Anya Taylor-Joy, que provou que sua excelente atuação em "A Bruxa" não foi apenas resultado do acaso.

Shyamalan acerta e mostra - mais uma vez! -  que ainda pode nos proporcionar um filme fantástico, tenso e profundo. A escolha de não forçar a aparição de todas as personalidades de Kevin é - para mim - um grande acerto, pois dá um enfoque maior ao desenvolvimento do enredo. Apesar de alguns escorregões no roteiro, a obra não é comprometida. Grande filme!
_____________________________________________________________________________

Curiosidade desnecessária: há uma cena em que há um casaco em cima de uma tábua de passar fechada, recostada na parede. Talvez eu esteja ficando louco ou o curso de História já tenha afetado meu cérebro, mas a construção da figura formada por estes objetos me pareceu simbolizar Anúbis (deus dos mortos, no Antigo Egito).