domingo, 31 de dezembro de 2017

Dedo de Prosa #18: Mãe! (2017)

Capa do filme.
O alvoroço provocado pelo novo filme do Aronofsky foi grande. Apesar de ver que muita gente estar comentando sobre o drama, eu evitei checar os reviews, pois conheço a filmografia do diretor de cabo à rabo e sei que suas obras merecem uma atenção maior, devido as constantes alegorias e simbolismos que ele traz. "Mãe!" não é diferente. Inclusive, talvez seja o filme mais alegórico e com mais simbolismos de toda a carreira do diretor.

Apesar de ter no seu papel principal a fraca (e mais nova queridinha de Hollywood) Jennifer Lawrence, nada há para se queixar com relação à atuação, tanto dela quanto do seu parceiro Javier Bardem, além da brilhante participação dos coadjuvantes Ed Harris e Michelle Pfeiffer. O filme, enxergado através da ótica da personagem interpretada por JLaw, transmite uma sensação intensa de angústia, como se a cada plano o mundo que estivesse ao seu redor pudesse ruir completamente. Os enfoques no misé-en-scène, como função de construção simbólica da narrativa, são cruciais para sedimentar a atmosfera claustrofóbica que está presente em todo o longa.

Mãe (JLaw) é uma mulher pacata, que vive numa casa isolada com o seu marido poeta. Na inconstância do relacionamento, onde ela está insatisfeita pelo descaso com que é tratada e ele pela incapacidade de produzir algo referente à sua escrita. Nesse cenário de conflito psicológico, a trama se desenvolve. A própria fotografia e o som, em vários momentos do longa, enfatiza esse sufocamento sentido pelos dois, além da própria postura que ele assume ao interagir com a sua amada.

Agindo em duas frentes, o enredo proporciona significados distintos (mas conjuntos em significância narrativa), o que faz com que o filme, mesmo aos que não compreenderem de imediato, obtenha sucesso mesmo com o entendimento raso da trama. Alimentado pela ideia da Criação, o enredo personifica Ele/Deus (Javier Bardem) como o engenheiro por trás de toda a criação, sendo a Musa/Mãe[Natureza] um elemento de equilíbrio desse processo. O Homem (Harris) representa a figura bíblica de Adão e a Mulher (Pfeiffer) a de Eva. O irmão mais velho (Domhnall Gleeson) e o irmão mais novo (Brian Gleeson) representam, respectivamente, Caim e Abel.

"Mãe!" narra a história de um processo de criação e sobre a Criação. A Musa em chamas apresentada no início do filme é o ponto de partida de onde Mãe reconstrói o mundo a partir das cinzas, esvaziado pelo esgotamento do "poema" anterior. É em dependência da ação de Mãe que Ele coloca as responsabilidades do seu processo criativo, de forma que é a partir da reconstrução da casa, por parte da Mãe, que é possível que as ideias (representadas pelo Homem) voltem a frequentá-la. 

Neste panorama, a aparição do Homem e da Mulher suscitam o pecado original (simbolizado aqui pelo vilipêndio à pedra preciosa - "fruto proibido" - guardado no escritório d'Ele), aquele que desencadeou todas as mazelas que perverteram a humanidade e que vão, paulatinamente, sendo representadas com a destruição progressiva da casa onde todos estão, que simboliza o nosso mundo. Na busca incessante por uma "injeção de adrenalina" criativa, Ele permite com que toda a desgraça do mundo seja ampliada, mesmo com toda a relutância de Mãe.

Passada a expulsão do Homem e da Mulher da casa - "Paraíso" - e o livramento das pessoas - dilúvio - pós-funeral do Irmão mais novo - Abel - é restaurada uma atmosfera mais amena, onde Ele e Mãe geram uma gravidez, o que finalmente alimenta a criatividade do poeta que, influenciado pela vida e o amor, escreve uma poesia - escritura - descrevendo todos aqueles acontecimentos.

Recebido com clamor pelo povo - fundamentalistas fanáticos - a casa é novamente invadida, fazendo com que a Mãe (Natureza) se desespere novamente. Em meio ao caos generalizado construído pelos asseclas d'Ele, Mãe dá luz à um bebê - Cristo - que, em um momento de descuido dela, é levado por Ele para o povo - humanidade - que o sacrificam, bebendo o seu sangue e comendo o seu corpo.
A simbolização do sacrifício de Cristo.
Embora recebido o perdão d'Ele, o caos produzido pelo povo - humanidade - é tamanho que a destruição de tudo - apocalipse - é inevitável e a Mãe toca fogo na casa, representando o fim de um ciclo. Desconsolada por não ter sido suficiente à Ele, Mãe entrega seu último despojo de amor e cede o seu coração - progressivamente apodrecido durante o filme - à Ele, de onde é retirada uma joia que leva, novamente, ao princípio. Legitimando, assim, a compulsão criativa d'Ele, um Deus egocêntrico à quem ser amado é mais importante do que amar.

Destarte, digo sem medo algum que "Mãe!" é - para este que vos fala - o melhor filme (e o mais corajoso, em termos narrativos) do ano. Aronofsky ascende, novamente, como um dos grandes nomes do cinema contemporâneo, pela fidelidade ao seu estilo e a sua excentricidade artística. Tecnicamente impecável, narrativamente preciso e alegoricamente poético, "Mãe!" é um deleite para qualquer cinéfilo.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Dedo de Prosa #17: Dunkirk (2017)

Capa do filme.
O filme que faltava à carreira do Nolan.

"Dunkirk" não é o melhor filme do Nolan, isso ficou claro para mim quando os créditos começaram a rolar e aquela impressão de "tá... foi bom, mas eu esperava mais" começou a latejar na minha mente. Não é que o filme seja ruim - longe disso! - mas ele possui pouca engenhosidade na hora de criar uma narrativa um tanto inventiva, fazendo com que o filme - primoroso tecnicamente - acabe repetindo algumas fórmulas já batidas no gênero do cinema de guerra. Ainda assim, considero esse filme um divisor de águas na carreira do diretor inglês.

Christopher Nolan é - junto de alguns outros nomes como Darren Aronofsky, Denis Villeneuve, David Fincher, entre outros - um dos diretores mais promissores dessa safra de novos cineastas que surgiram dos anos 90 para cá. Contudo, o nome do britânico ainda parece deixar muito cinéfilo - em especial os mais saudosistas! - com um certo pé atrás, haja vista as suas narrativas, por vezes, comerciais e megalomaníacas (no bom sentido).

É justamente aí que "Dunkirk" entra. São inúmeros os cineastas, tanto britânicos quanto americanos, que tiveram como marcos fundamentais de suas obras grandes filmes ambientados em guerras, tais como Kubrick ("Full Metal Jacket"/"Paths of Glory"); Coppola ("Apocalypse Now"); Malick ("The Thin Red Line"); Spielberg ("Saving Private Ryan"/"Schindler's List"); Lean ("The Bridge on the River Kwai"/"Lawrence of Arabia"); Cimino ("The Deer Hunter"); Stone ("Platoon"); Polanski ("The Pianist"), entre outros. Dito isto, considero - estrategicamente falando - uma escolha bem feita ter resolvido dirigir um filme deste teor agora, ainda que o resultado final não tenha sido o melhor possível. É a ponta-de-lança para que passem a respeitar o nome do Nolan como o grande diretor que é.

Quanto ao filme em si, não há muito o que ser dito. Tecnicamente o filme é primoroso. Cada plano é realizado de maneira cirúrgica, de tal modo que mesmo as tensões trabalhadas na narrativa são refletidas na forma como a filmagem transcorre, provocando uma sensação de imersão na trama pouco comparável. O som é um elemento à parte, não só pela já característica trilha-sonora fabulosa de Hans Zimmer, como pela mixagem dos efeitos sonoros aliados aos eventos da trama.

A catarse do filme.
Contudo, a trama do filme deixa a desejar quando o roteiro, um tanto caótico, começa a apresentar incongruências dentro da sua própria proposta, haja vista que o filme começa fugindo dos estereótipos spielbergerianos das romantizações dos heróis e vilões e das narrativas ortodoxamente lânguidas, priorizando uma atmosfera mais sensorial e enigmática. Contudo, com a não-linearidade dos eventos e a profusão de diversos segmentos narrativos menores dentro de toda a trama, o filme não consegue desenvolver seus personagens e acaba por falhar ao tentar produzir um sentimento de identificação estes.

Desta forma, "Dunkirk" acaba por ser um filme técnico e seguro, a ser analisado especialmente sob esta ótica. Talvez devido a pretensão com que tenha sido produzido ou mesmo o resultado total da trama, que desemboca em uma lógica indutiva gerando insatisfação no final, o filme acaba por se mostrar como um dos mais fracos da carreira do diretor. Ainda assim, é - para todos os fins - um dos mais importantes para a história do Nolan.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Sem Mais Delongas #18: A afetividade caótica.

(ou de como Eros e Ágape vivem em guerra).


"Amamos o próprio desejo e não o desejado."¹

É curioso como as percepções que carregamos acerca de determinados nichos do conhecimento, especialmente aqueles relacionados ao campo das relações humanas, são maleáveis e, até certo ponto, incognoscíveis. De facto, o modo como entendemos a realidade presente de um determinado arcabouço de particularidades sensoriais é - em substância - afetado pelo envolvimento com que se dá o contato do sujeito com o objeto. Contudo, embora essa introdução conduza à um raciocínio que se erga semelhante à uma espécie de relativismo kantiano, o ponto que aqui quero tratar não é esse.

É possível pensar o campo das relações afetivas como uma norma prescritiva que possa ser abstraída por meio da razão ou toda a composição das características que envolvem esse campo das relações humanas está - necessariamente - entregue à um relativismo barato? Não pretendo argumentar a favor de nenhuma das duas opções, pois não presumo conceber a complexidade do comportamento humano em sua totalidade, tampouco presumo que é tudo uma questão de acaso.

A grande questão que envolve - ao meu ver - esta tratativa, é o cinismo com que somos tencionados a agir quando estamos expostos aos conflitos - internos e externos - que compõem esse campo das relações humanas, como abordei brevemente aqui. O campo das relações afetivas, afinal, é o nicho mais idealizado das relações humanas, fazendo com que a necessidade, quase que compulsória, de uma projeção exterior das pretensões - concretas e abstratas - dos nossos anseios próprios, seja um elemento fundamental daquilo que incorpora toda a atmosfera dessas relações, fazendo com que se delegue as responsabilidades pelas incompletudes específicas de cada indivíduo.

Quase como um amor fati nietzscheano, em um estado de transporte da nossa consciência sensorial da realidade factível para um campo idealizado dessa consciência, que forja percepções incongruentes no objeto de identificação externa, esse cinismo intrínseco alimenta um jogo dialético de poder e submissão que conduz essas relações ao parasitismo existencial, fazendo com que o fim último de toda espécie de relação afetiva seja a perpetuação de uma imagem de sobreposição (de preferência) assintomática.
"The nightmare" (Johann Heinrich Füssli, 1781)
Essa identidade forjada, impulsionada por todo esse processo narrado anteriormente, produz decorrências consequencialistas caricatas e plásticas, tornando todo o transcorrimento desses eventos em tentativas compulsórias de ratificar as posições que foram pré-estabelecidas nas projeções realizadas do sujeito para com o objeto. Para mais ou para menos, essa compleição de aspectos não consegue ser plenamente superada, o que determina o caminho senoidal pelo qual percorre as sinestesias desse jogo dialético.

O fenômeno da vida estetizante, entendido aqui não apenas como a exposição externa daquilo que estimula essas relações, mas - concomitantemente - também as projeções artificiais elaboradas que, ad hoc, servem de reflexo dos interesses pessoais de cada sujeito, funcionam como um elemento de alienação perante toda essa conjuntura de acepções e entregas que, para o bem ou para mal, estão presentes em qualquer relação afetiva.

Os mecanismos materiais de comunicação afetiva; as exigências e aquiescências corroboradas pelas ambições polarizantes; os elementos de transposição das responsabilidades enternecedoras e demais outros aspectos que compõem essas relações, são - lato sensu - expressões daquilo que entendo por características indicativas da maneira egocêntrica (e orgulhosa) com que esses vínculos afetivos funcionam, das mais variadas formas e ordens. Ainda assim, é compreensível a preferência que é dada à todo esse processo, mesmo considerando sua condição caótica e amedrontadora de funcionar, haja vista que a ausência dele é - por vezes - desconsoladora.
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¹Citação extraída de "100 aforismos sobre o amor e a morte", por Friedrich Nietzsche.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Dedo de Prosa #16: Star Wars VIII - Os Últimos Jedi (2017)

Capa do filme.
Entre ano e sai ano, somos mais uma vez agraciados com um filme da saga mais bem sucedida da história. Sucedendo os acontecimentos de "O despertar da Força", o episódio VIII não decepciona ao assumir a tarefa de combinar os elementos apresentados na primeira trama desta nova trilogia, dando maior substância aos personagens e incorporando-os melhor dentro do universo em que estão inseridos.

Neste sentido, "Os últimos Jedi" consegue pavimentar de maneira magistral o caminho para os próximos capítulos da franquia, construindo seu enredo sob uma atmosfera de tragédia e inquietação (incrível como praticamente nenhum plano elaborado durante o filme dá certo), suscitando curiosidade e inventividade no tratamento do longa.

Até mesmo o maniqueísmo - trabalhado à exaustão durante a história da franquia - embora ainda esteja presente neste oitavo episódio, apresenta-se aqui com elementos mais intensos, focalizando nas tensões dos dois polos deste maniqueísmo (Rey e Kylo Ren) as inseguranças de personagens ainda incompletos e em busca de uma melhor compreensão de si mesmo e, também, de seus próprios poderes.

A ruptura com o molde tradicional com que a construção das narrativas de Star Wars eram construídas é elemento significativo neste longa. Embora continue respeitando todo o arcabouço simbólico que a franquia construiu nas últimas décadas, o diretor Rian Johnson conseguiu fazê-lo de modo sensível o bastante para que as sutis representações nostálgicas apresentadas não fossem apenas fan services comerciais e sem função narrativa. 

Deste modo, este oitavo episódio assume - para o bem ou para o mal - a necessidade de expansão da franquia na composição de outros universos narrativos, o que fica bem claro na exibição feita de diversos outros planetas e personagens que ainda não eram de conhecimento do público.

Todos os personagens principais possuem um espaço agradável de tela, em função das necessidades de resolução que cada um acaba por ser incumbido de cumprir dentro do contexto geral do filme. Mesmo a figura de Luke, por vezes, apresentada como um sujeito imponente e relutante, encaixa-se magistralmente com as problemáticas dispostas durante o filme, especialmente nos diálogos entre ele e Rey

A atmosfera de aventura e tensão dentro do contexto galático da franquia continua presente, embora cada vez mais com uma roupagem mais dinâmica e corajosa. Pois não só como os Jedi e a Força, o próprio universo que gira ao entorno da franquia necessitava de uma vitalizada substancial e esta, definitivamente, foi alcançada com o oitavo episódio.

Para além dos acontecimentos do filme, evitados nesta resenha com o intuito de não propagar spoilers desnecessários, asseguro que, pessoalmente, "Os últimos Jedi" é o melhor filme de Star Wars desde que a franquia voltou à ativa em 2015. Em termos de dramatização e reviravoltas narrativas, arrisco-me a dizer que o oitavo episódio só não supera "O império contra-ataca", já colocado no status de melhor da franquia.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Utopia, por Björk (2017)

Capa do disco.

(um desabafo em nome da beleza do amor)


Björk é - ao menos para mim - uma das cantoras mais interessantes, inovadoras e corajosas (musicalmente falando), do cenário fonográfico das últimas décadas. Apesar de ter priorizado um aspecto mais pessoal e sentimental em seu último disco, "Vulnicura", a cantora islandesa retorna, em seu novo disco, às experimentações que marcaram tão assiduamente sua carreira.

Disco mais longo da carreira da cantora, o disco conta com 14 faixas, totalizando cerca de 71 minutos de música. Utopia, como o próprio nome sugere, retrata a esperança de se encontrar amor em um mundo desolado. Como uma energia sublime que é retirada do seu estado de inércia. Sentidos acordando em uma composição de sons, ora claros ora enigmáticos.

A primeira faixa, "Arisen my senses", inicia o disco com uma composição de vocais sobrepostos, dando massividade à um instrumental em senoide, que alterna momentos de dinamismo e calmaria, representando o acordar de um estado de sonolência sentimental. A segunda faixa, "Blissing me", soa um tanto mais limpa, com alguns beats específicos pra dar ritmo ao som, como a exortar a inocência ilusória de um amor pulsante e visceral.
 A terceira faixa, "The gate", possui uma atmosfera quase épica, de modo que as passagens da música são conduzidas tal como um "grito" de redenção; a abertura para o caminho da luz. A quarta faixa, "Utopia", representa o prenúncio da proposta de toda essa conjuntura auditiva: o amor interno, composto por diversos instrumentos de sopro sincronizados, em uma harmonia belíssima.



 A quinta faixa, "Body memory", é uma espécie de jornada sonora e narrativa; uma espécie de odisseia simbiótica potente e acachapante, conduzida por batidas rítmicas e apoteóticas. A sexta faixa, "Features creatures", é um sopro de relaxamento; um descanso breve e límpido com efeito curativo, ressoando por entre as áreas mais profundas da alma.

A sétima faixa, "Courtship", possui um teor um tanto conciliador, de tal forma que os componentes musicais presentes nas anteriores se encontram aqui, ressaltando um, talvez, caminho menos árduo rumo à catarse. A oitava faixa, "Losss", simboliza um último grito de exortação; uma espécie de lavagem espiritual arrebatadora, abrindo de uma vez o caminho para a catarse.

A nona faixa, "Sue me", condiciona um sentimento de indiferença, demonstrando que os pesares anteriormente combatidos foram deixados para trás. A décima faixa, "Tabula rasa", remete à uma passagem de incumbências, caricaturando a entrada em um novo arcabouço de particularidades existenciais.

A décima primeira faixa, "Claimstaker", marca um tipo de manifesto em nome da ação; da afirmação de um caráter pessoal e indefectível que começa a se formar, como um "mergulho à uma floresta residente". A décima segunda faixa, "Paradisia", é uma música instrumental lúdica, que coordena uma espécie de assentamento próximo ao destino percorrido.

A décima terceira faixa, "Saint", salienta a construção de um novo alicerce de percepção das coisas; um antídoto musical assintomático. Por último, a décima quarta faixa, "Future forever", apresenta essa construção catártica finalmente completa; uma ponte transitória para a tão promulgada plenitude da fortaleza do amor.

Sob todos os aspectos, "Utopia" é um disco belíssimo. Mas diferente do seu anterior, "Vulnicura", que ainda possibilitava a audição de suas músicas de maneira separada, sem prejudicar diretamente o efeito simbólico do disco, este novo disco da cantora apresenta uma espécie de odisseia auditiva que, se não ouvida agrupadamente, perde um pouco de sua identidade, tanto sonora como simbólica.

De tal modo que, pode-se dizer, a Björk acabou por tornar "Utopia" em uma verdadeira utopia, alcançada apenas sob o jugo de uma imersão profunda naquele mundo de belezas incontestes. Mas, despiciendas estas considerações, "Utopia" é mais um grande disco de uma das maiores artistas em atividade no ramo musical.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Área Cult #8: Vi (2013)

Capa do filme.

(um ensaio sobre amor, liberdade, manipulação e possessão)


Poucos filmes se aventuram a mostrar as complexidades que compõem as relações amorosas. O cinema romântico com sua fórmula catártica já obsoleta assumiu a cátedra do gênero, tornando praticamente impossível pensar as questões amorosas sob o jugo de alguma espécie de objetividade. As fantasiosas narrativas, que obstruem a reflexão sobre o amor como um conjunto de conexões particulares e indivisíveis que dois indivíduos compartilham, tornou o cinema romântico em uma caricatura tediosa. Felizmente, a obra em questão: "Vi", dirigida pelo iraniano Mani Maserrat-Agah, tem uma proposta muito diferente e instigante sobre como representar o amor nas telonas.

O filme narra a história de Ida e Krister, casal que rapidamente se conhece e apaixonam-se um pelo outro. Além deles, o longa também abre espaço para a aparição de uma terceira personagem, Linda, brilhantemente interpretada pela fantástica Rebecca Ferguson. Já apresentados os três personagens e, a partir da decisão de morarem juntos, o relacionamento de Ida e Krister começa a tomar um rumo de conhecimento mútuo, sempre com uma atmosfera de tensão imposta aos diálogos do filme.

Em uma narrativa exatamente oposta à proposta catártica, o diretor buscou retratar os relacionamentos tais como eles são (de forma esdrúxula, claro). Ou seja, representar as relações amorosas como uma senoide inconstante, em que a derrocada sempre está presente. Conforme as personagens começam a manifestar mais ostensivamente as suas personalidades - Ida, manipulável, insegura e ardilosa; Krister, manipulador, hipersensível e possessivo - as bases da relação entre os dois começam a ser estremecidas. Em dado momento, a nesga de sentimento presente nas cenas é tão ínfima que questiona-se qual a verdadeira intensidade do amor que eles sentem um pelo outro.

É nessa hora que Linda, amiga de Ida, surge no longa com maior assiduidade, como uma espécie de consciência externa de Ida. O vai-e-vem vivido por Ida durante todo o longa, cruzando momentos de entrega absoluta ao seu objeto de amor (Krister) com sérias considerações aos questionamentos levantados por Linda com relação ao seu relacionamento com o marido, é o ponto auge (e central) do filme. Uma espécie de ode à inconstância e à aceitação de que tanto amor como as relações amorosas são um infindável choque de particularidades de um drama contínuo, "dividido por uma experiência cinegética de uma empatia simbiótica"¹.
Pois, para todos os fins, não existe fórmula ou descrição perfeita do que é o amor. O amor não existe em si, pois caso ele exista, há-de existir ad aeternum, sob todas as hipóteses. A união de Ida e Krister mostra bem isso e como tudo é incompreensível, pois as sensações que alimentam cada um são indivisíveis, pessoais e dicotômicas. Por isso os indivíduos cedem e se fundem nesse processo, ou acabam produzindo concepções distintas sobre como deve funcionar o amor, embora não tenham controle sobre isso. Talvez, assim como Ida e Krister, o amor nos seja impelido dessa maneira: como uma incessante disputa entre a liberdade e a dependência.
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Notas explicativas:
¹Trecho extraído da canção "If I didn't have you", do cantor e comediante australiano Tim Minchin.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Dedo de Prosa #15: O Jardim das Aflições (2017)

Capa do filme.
"O filme que não deveria existir."

Antes de falar objetivamente sobre o filme, acho necessário colocar algumas palavras: nunca me considerei um aluno e, muito menos, um discípulo do Olavo (até porque não tenho a prepotência para assim me denominar), mas nutro pelo pensamento Olavista um apreço considerável e uma concordância significativa com boa parte de suas ideias (embora não sejam todas). Por isto, considero simplesmente ultrajante toda a maracutaia e patifaria promovida pelo festival de Recife com relação ao filme, demonstrando sintomaticamente o parasitismo de boa parte da intelligentsia brasileira. Mas vamos ao que interessa.

É claro que é impossível adaptar todo o contexto de uma obra literária para o cinema. As plataformas de produção dessas vertentes artísticas são compostas de características muito distintas e é muita ingenuidade imaginar que um filme consiga abarcar toda a narrativa tratada no livro (ainda mais quando este aborda tantas questões, especialmente filosóficas). Por isso que, ao menos para mim, o filme O Jardim das Aflições serve apenas como um introdutório das reflexões engendradas por Olavo no seu livro homônimo e, em certa medida, ao resto de sua extensa produção filosófica.

Na primeira parte do filme: Contra a tirania do coletivo, o Olavo desencadeia a ponta do iceberg de suas reflexões acerca das compleições socio-político-jurídicas do mundo contemporâneo, tomando como princípio "o jardim das delícias" de Epicuro, no qual ele encontra as raízes que viriam, posteriormente, a desembocar nas ideias que culminariam nas aflições de seu jardim. Neste ponto, o Olavo se põe ostensivamente contra a ação centralizadora e instrumentalizada com que o Estado detém o poder, bradando de tal forma que - brinco - assemelha-se a um libertário inveterado.
"O jardim das delícias terrenas" (Hieronymus Bosch, 1504)
A política dos direitos - uma espécie de mantra do "bom selvagem" contemporâneo - é tratada pelo Olavo como o principal instrumento de contribuição para o crescimento do Estado e a manutenção de seu poder. Ao manipular-se o inconsciente (imbecil) coletivo, criam-se as raízes para que se estabeleça uma autoridade artificial dessa organização política (e criminosa) denominada Estado.

Para tal, faz-se necessário que essa organização anteriormente citada incorpore as responsabilidades de produção das áreas de propagação de ideias, conduzindo um discurso a se tornar hegemônico. Ao se instrumentalizar esse inconsciente, inspirado em estratégias gramscianas, é propiciado o ambiente para reverter aquilo que o sociólogo brasileiro Raymundo Faoro cunhou de estamento burocrático, fazendo dessa nova classe o status quo do poder.

A segunda parte do filme: Como tornar-se o que é, tem seu enfoque maior voltado para a formação da personalidade e, consequentemente, para o próprio Olavo. Explicitando a origem das ideias e explicando o motivo inicial de seus interesses intelectuais (o porquê do sofrimento), o filme vai destrinchando as ideias e ambientes que foram cruciais para a maneira de enxergar a vida do filósofo brasileiro. O ambiente familiar - principal foco de resistência ao Estado, como diz o próprio - é colocado em destaque neste plano do filme.

Contudo, apesar do seu contexto narrativo e a importância com que esse seio institucional tem, não só para o Olavo, mas também para a sociedade como um todo, considerei um tanto desnecessária a exposição da vida pessoal do filósofo. Penso que esse tempo de tela poderia ter sido usado melhor tratando-se mais especificamente da produção filosófica do autor em questão. Mas, claro, tenho essa percepção porque, para todos os fins, não me importo com a vida pessoal dele, o que talvez mude com relação aos outros telespectadores que venham a ver o filme.

A terceira parte do filme: A ideia dos náufragos, foca no próprio exercício da filosofia em si: o ato de filosofar. Como um homem perdido, tal como definido por Ortega y Gasset, a ideia do náufrago é uma espécie de resolução que, conforme se caminha em rumo à erudição, tende a defrontar-se com a morte e a irrevogabilidade de tudo. Tudo que existe é moldado segundo as circunstâncias e só o que nos resta é a absorção destas. O nosso destino, se assim o pudermos chamar, é parasitar em categorizações que nos são caras. Pois, no fim, as únicas ideias que valem são aquelas importantes o suficiente no momento em que estamos nos afogando.
Caçando os esquerdistas.
Apesar do tom de bajulação que às vezes surge no filme (consequência clara da admiração dos produtores do filme com relação ao filósofo), a construção do longa deixa a desejar ao mostrar as ideias do Olavo sem uma espécie de confrontamento mais claro. É óbvio que o intuito do filme é mostrar e disseminar as ideias do pensador, tais como elas são, mas trabalhar as ambiguidades com que o próprio Olavo erigiu seu pensamento poderia ter acrescentado para o filme. Contudo, isso não foi o suficiente para diminuir o brilhantismo do filme.

Olavo de Carvalho é, talvez, uma das figuras mais importantes no confronto com a hegemonia de pensamento e, citando o Lobão, o apartheid intelectual que foi engendrado nos meios de difusão de ideias pela intelligentsia brasileira. Além disso, foi por influência sua que muitas produções bibliográficas chegaram ao alcance dos leitores brasileiros, que jamais teriam acesso se não fosse pela sua iniciativa. E, sobretudo, na formação intelectual de diversos jovens. Por isto é, ao menos para mim, compreensível o furor que seu nome causa, tanto por admiradores quanto por detratores. Afinal, a maior força que existe é a personalidade e, sem dúvidas, isso é algo que não falta ao Olavo.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Área Cult #7: Poesia Sem Fim (2016)

Capa do filme.
Discorrer sobre um filme do Jodorowsky é - sem sombra de dúvidas - um grande prazer e um imenso desafio. Para além das peculiaridades nada ortodoxas de suas obras, existe no seu tato cinematográfico uma intensa tentativa de aplicar exercícios estilísticos de arte, e isso, em um cenário onde a perpetuação das mesmas caricaturas idiossincráticas do cinema contemporâneo, é algo a se admirar.

É com isto em mente que se escancara a proposta de Poesia sem fim, uma espécie de auto-biografia hiperbólica do próprio diretor. Por meio dos versos roteirizados dentro da narrativa, o diretor - que em muitos momentos aparece em cena, como a consciência da personagem, complementando a cena que se dramatiza - descreve a sua jornada em contato com a arte (e, mais especificamente, a poesia) da infância até a vida adulta.

O pequeno Alejandrito, interpretado pelo filho do diretor (Adan Jodorowsky), vive em um lar repleto de amarras sociais. Seu pai (também interpretado por um filho do diretor: Brontis Jodorowsky), rígido e extremamente autoritário, exerce sob a criança um pavor que o impele de aflorar seus instintos artísticos. Contudo, em um rasgo de rebeldia sentimental, ele rompe o contato com sua árvore genealógica (e isso não é uma metáfora), partindo de encontro com uma epopeia de auto-conhecimento e aprimoramento artístico.

Pois, como bem expressa uma parte do roteiro, "o único sentido da vida, é a vida" e, da mesma forma, a única explicação para a poesia, é a poesia. Por mais que seja um "filme-testamento", Jodorowsky faz questão de construir uma realidade imaginária, extrapolando os acontecimentos que retrata no longa. É o lirismo aliado ao verossímil que construiu sua carreira artística e, usando de certa metalinguagem, o diretor faz questão de mostrar como essa sua concepção de arte foi construída.

E é desse conflito fraternal que emerge toda a construção da trama. Mais ainda do que um filme sobre si mesmo, sobre a poesia ou sobre a arte, Poesia sem fim é, também, o perdão de um filho para com seu pai, que nunca mais se viram depois da juventude do diretor. É a voz de um viejo que sussurra para o seu passado, tentando acalentar o seu eu jovem e mostrar que tudo ficará bem.
O último encontro de pai e filho (Jodorowsky no centro, guiando os atores).
Segundo filme de uma logia de cinco filmes, que começou com A dança da realidade (2013), em que o diretor procura retratar sua vida através da poesia cinematográfica, Poesia sem fim é uma expressão sintomática do vil e do erudito, da beleza e do hediondo. É - para além de qualquer análise crítica - um deslumbrante espetáculo de fantasias e excessos, que adornam ainda mais a carreira cinematográfica de um dos grandes nomes da Sétima Arte.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Sem Mais Delongas #17: A sociedade, o comportamento e o Narciso.

(reflexões sobre a ética como juízo de valor).


Muito já foi escrito sobre como deveria ocorrer o funcionamento do comportamento humano, seja individualmente ou socialmente. Dada esta realidade histórica do pensamento e a construção inenarrável de sociedades baseadas em imperativos categóricos, foi possível observar a transformação das interações interpessoais em instituições sociais que erigem a estabilidade das mesmas. Contudo, tal produção de concepções se perverteu em preceitos normativos insustentáveis logicamente, haja vista que não é possível se extrair preceitos descritivos que determinem um sistema de ética, sem que haja uma distinção entre as concepções do dever com o ser.

Toda proposição normativa tende a ser produzida de modo a refletir compreensões narcisísticas de mundo, pois presume que a prescrição de moralidade reside essencialmente da relação comportamental do indivíduo como um fim em si mesmo. Esta anátema promulgadora de determinados métodos de enxergar a realidade humana produziu uma consciência coletiva de que os escopos da razão são irrefragáveis, dando ao debate um tom altamente ególatra e que, muitas vezes, descamba para a antinomia.
"Metamorphosis I" (Escher, 1937)
A priori, subjugamos o instinto compulsório de nossas vontades a fim de quantificar as diretrizes morais que uma sociedade deve ter, mas com isso retornamos ao problema inicial dos imperativos categóricos e sua fraqueza perante uma avaliação cética, como Hume a guilhotinar tais ídolos.

O indivíduo é parte central da construção das compreensões morais de uma sociedade, sendo um sistema de ética unicamente justificável quando postulado de modo a refletir valores que se justificam per si, como os direitos naturais propostos por Locke em “Segundo Tratado Sobre o Governo”. Contudo, tal visão sempre é tomada de modo a suscitar a ideia de um subjetivismo exacerbado, como se a gênese daquilo que caracteriza o comportamento humano residisse apenas em suas vontades e/ou prazeres, o que resulta em ideias como a do utilitarismo.

Ayn Rand, em “A Virtude do Egoísmo”, demonstrou brilhantemente como a percepção de que a ética tomada como princípio de devir tende ao paroxismo, haja vista que a arregimentação destes princípios como base da ética incorpora um estado de organização social que, muitas vezes, acaba legitimando a violência, física ou psicológica, daqueles que possam não concordar com as ações de um indivíduo, podendo esta violência ser originária tanto de uma pessoa quanto de alguma instituição social e/ou política.

Sendo assim, pode-se perceber que a natureza intrínseca daquilo que constitui a ética de uma sociedade não reside unicamente em preceitos subjetivos ou objetivos, mas que são moldados a partir de caracterizações auto-evidentes. Foi o exercício ontológico proporcionado pelo processo de transformação da práxis humana que nos permitiu compreender as relações de comportamento da humanidade. 

Logo, ressalta-se o quanto é importante que nos sujeitemos ao julgamento, pois a partir do mesmo que o debate público sobre a ética, no decorrer da história, permitiu a fundamentação da compreensão das civilizações contemporâneas. Talvez mais importante que qualquer sistema de ética, a perversão do comportamento em algo que esteja imune aos julgamentos, seja a grande questão contemporânea. É mais um dos absurdos mitos que o nosso Narciso produziu e que, indubitavelmente, visa a ocultação do seu real intento: o caos social.

sábado, 15 de abril de 2017

Dedo de Prosa #14: Velozes e Furiosos 8 (2017)

Capa do filme.
Existem alguns fatos que são visíveis para todos. Talvez o mais evidente deles é o tamanho do significado que a franquia Velozes e Furiosos tem para a história da cinematografia mundial. Repleto de conceitos filmográficos revolucionários, sempre com um roteiro extremamente filosófico e profundo ao investigar a natureza humana, com um zelo técnico absurdo no tratamento dado aos enquadramentos e os jump-cuts sempre muito bem colocados e, especialmente, com um compromisso irrefragável com a coesão com a realidade, sempre retratando situações totalmente factíveis e com nexo.

A atuação dos atores, que aparecem na tela como um conjunto de professores a ensinar para os seus colegas de Hollywood como se atuar, é primorosa. A riqueza do mise-en-scène é tamanha que fariam produções clássicas do cinema da Nouvelle Vague se prostrarem em reverência ao imenso acervo de nuances interpretativas que os gênios da interpretação que fizeram este filme têm.

A produção contínua dos diálogos - extremamente herméticos, dada a complexidade dos assuntos tratados - aliada a uma trilha-sonora minuciosamente escolhida - como uma mistura de tons do classicismo dramático de Wagner com a limpidez romântica de Chopin - e, para encerrar com chave de ouro, uma fotografia que produziria arrepios ao Malick, é algo que marcará para sempre o cinema.. Tudo isso, composto numa narrativa épica com toques de tragédia grega, produz uma sinestesia sem precedentes aos seus telespectadores, comprovando como a franquia se estabelece como um divisor de águas para a produção cinematográfica no mundo.

Mas agora falando sério (e espero, sinceramente, que você tenha percebido o sarcasmo das palavras ditas anteriormente), a fórmula seguida por Vin Diesel e sua trupe já não é segredo de ninguém. As repetições dos mesmos clichês são vomitadas na sua cara sem a menor vergonha. Dessa vez, tentando provocar um twist diferente, os produtores buscaram fazer com que o próprio Dom (Vin Diesel) fosse o agente questionador daquilo que constituiu a franquia (e que é repetido ad aeternum sem o menor pudor): a família.

Colocando caras novas no elenco (como o fraquíssimo Scott Eastwood, a coroa mais linda e talentosa do mundo: Helen Mirren, o - para mim - mal aproveitado Kristofer Hivju e a deslumbrante Charlize Theron) e fazendo com que alianças nada prováveis, como a de Hobbs (Dwayne "The Rock" Johnson) e Ian Shaw (Jason Statham), ocorram, o filme tenta desvirtuar um pouco da logística da narrativa. Pra contribuir, o filme ainda traz à tona figuras carimbadas de longas anteriores, como a policial Elena (Elsa Pataky).

Contudo, nem mesmo a revolta de Dom (Vin Diesel) é capaz de produzir uma mudança significativa na linha de raciocínio dos produtores e roteiristas da franquia. Até mesmo os alívios cômicos oferecidos por Roman (Tyrese Gibson) estão presentes como função narrativa indispensável para a casca do funcionamento do enredo, que já é do conhecimento de todos.

Há tempos que Velozes e Furiosos perdeu aquela essência dos rachas e da cultura de rua dos carros fodelásticos, se transformando em uma franquia de ação compromissada apenas com o entretenimento do público em ver tiros, porrada e bomba (como diria uma pensadora contemporânea (sic) por aí). Mas vou além, pois algo ficou claro com este oitavo filme: para além da ação, a franquia é também uma produção extensa de aventuras, onde um grupo assume a responsabilidade de vencer a "batalha". No quinto filme o inimigo era Hobbs (Dwayne "The Rock" Johnson), no sexto era Owen Shaw (Luke Evans), no sétimo era Ian Shaw (Jason Statham) e neste oitavo temos Charlize Theron (Cipher), mas em todos eles se percebe a criação de toda uma problemática a ser resolvida.

Seja como for, é o que já disse algumas vezes: a opção em assistir mais um filme da franquia é rigorosamente nem um pouco ligada à técnica. Afinal, é justamente o apelo comercial e o imaginário popular que impulsionam o sucesso da franquia. Se você é como eu e aprecia películas em que o contexto narrativo tem função exclusiva de entreter, então não se importará de ver mais uma sucessão de carros quebrando, bombas explodindo e porrada comendo. 

É justamente essa suspensão de descrença que marca o fervor que muitos (e me incluo nisso!) ainda têm pelos filmes de Velozes e Furiosos, afinal ninguém é de ferro e às vezes é necessário algo mais light do que a verborragia conceitual de cineastas mais complexos. Para esse alívio que existem franquias como essa e, talvez por isso, que a gama de espectadores permaneça tão fiel ao que esta representa, sempre mantendo esse entretenimento como fator primordial na produção dos filmes. Talvez a família, de que Dom (Vin Diesel) e sua turma tanto falam, sejamos nós. Resta apenas saber se realmente não abandonaremos essa família.

domingo, 2 de abril de 2017

Dedo de Prosa #13: Fragmentado (2017)

Capa do filme.
"Os afligidos são os mais evoluídos."

Eis aqui, definitivamente, meus respeitos ao que Shyamalan pode representar para o cinema contemporâneo. Eu já havia ressalvado, em "A Visita", uma possível volta por cima na carreira do diretor, mas foi com Fragmentado que o indiano provou sua capacidade como cineasta e produziu seu melhor filme desde "O Sexto Sentido".

É claro que ao se falar em sua filmografia, não se pode deixar de lado as características que tanto o marcaram: a relação de imanência e metafísica que acompanham suas narrativas; os dilemas psicológicos que acometem os personagens ou até mesmo os enquadramentos não-ortodoxos que marcaram sua carreira. Contudo, há uma mudança significativa no tratamento deste longa (e que também esteve presente no seu filme anterior): o cuidado em não se limitar à produção forçada de plot twists.

Fragmentado começa como um simples thriller: um homem, aparentemente traumatizado, rapta três garotas e as prende em um tipo de sótão localizado em um lugar anônimo. Com o desenrolar da trama, são mostradas as nuances que percorrem a trama: o transtorno dissociativo de identidade (TDI), vivido por Kevin (James McAvoy) e os traumas de vida de Casey (Anya Taylor-Joy).

Com o manifesto de algumas das 23 personagens de Kevin - Dennis, um psicopata com TOC (transtorno obsessivo compulsivo), que gosta de ver mulheres nuas dançando pra ele; Barry S, um estilista extrovertido; Hedwig, uma criança ingênua; Patricia, uma maníaca controladora - e a aparição da Dra. Fletcher (psicóloga de Kevin), uma Luz(!) nos abre os olhos: o sofrimento.

Imagine-se em uma jaula, preso; na companhia de outras 22 pessoas, que podem ser outras ou não. Imagine que a sua realidade seja uma simbiose de noções inequívocas de uma realidade decadente, onde uma simples abstração pode significar a ruína de todo um ser. Há um momento em que a fuga desta verdade é simplesmente irrefreável e não há nada a se fazer, a não ser trabalhar um rito catártico. A única alternativa é libertar esta Fera, trajada de ódio e vitalidade. A transmutação de todos os valores em sua excelência!

Sem controle. Não há escapatória para a humanidade. Apenas a experiência de confrontar a realidade, tal como ela é, pode lhe proporcionar uma chance. Pois, antes de tudo, é a dor da existência que nos permite diferenciar os fortes dos covardes. A mesma dor que permite, na individualidade de cada ser, saber se conseguiremos nos exultar, ultrapassando a nós mesmos.

Tudo isso (e muito mais!) é realizado de forma magistral, dado o zelo técnico do diretor e as brilhantes atuações do (para mim, subestimado pela indústria) James McAvoy - que consegue transformar cada detalhe de sua atuação em um ponto-chave para o entendimento de cada personalidade - e da magnífica Anya Taylor-Joy, que provou que sua excelente atuação em "A Bruxa" não foi apenas resultado do acaso.

Shyamalan acerta e mostra - mais uma vez! -  que ainda pode nos proporcionar um filme fantástico, tenso e profundo. A escolha de não forçar a aparição de todas as personalidades de Kevin é - para mim - um grande acerto, pois dá um enfoque maior ao desenvolvimento do enredo. Apesar de alguns escorregões no roteiro, a obra não é comprometida. Grande filme!
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Curiosidade desnecessária: há uma cena em que há um casaco em cima de uma tábua de passar fechada, recostada na parede. Talvez eu esteja ficando louco ou o curso de História já tenha afetado meu cérebro, mas a construção da figura formada por estes objetos me pareceu simbolizar Anúbis (deus dos mortos, no Antigo Egito).

sábado, 28 de janeiro de 2017

Sem Mais Delongas #16: A estranheza na lógica binária.

(ou como a contemporaneidade "ama" a humanidade e odeia o seu semelhante).


A binariedade como proposição lógica é uma das mais antigas (e opacas) tradições filosóficas. Em Da Interpretação, Aristóteles postula o que ficou conhecido como princípio da não-contradição, ou seja, em um confronto de proposições contraditórias (em que uma anula a outra), uma destas é obrigatoriamente verdadeira e, obviamente, a outra é falsa. Não há possibilidade, segundo Aristóteles, de algo ser e não ser, simultaneamente. Salvo quando vista sob à luz de algum tipo de ambiguidade característica. Contudo, com o avanço do curso histórico, essa noção aristotélica se perverteu em uma bivalência um tanto quanto estúpida.

Quando se estabelece um tipo de discussão analítica sobre algum tema, é instintivo que se imaginem proposições adversas de perspectiva. Contudo, a natureza intrínseca do processo analítico é composto de diversas nuances que alternam, invariavelmente, a essência do assunto discutido. Tentar promover um valor-verdade baseado apenas na anulação da adversa, apenas anula a característica profunda de toda investigação filosófica: o questionamento, puro e simplesmente.

Tendo dito isto, trato como algo um tanto quanto surreal a aplicação dessa mesma lógica em um espectro de amplitude maior. A discrepância do confronto de ideias opostas com relação ao confronto de situações, sociais e econômicas, é abismante. Sendo assim, merecedoras de um tratamento mais profícuo. É por isso que, nos tempos cotidianos, a relação feita entre os fatores exclusivos de um determinado indivíduo serem determinantes para um outro, me aparenta ser, no mínimo, um tanto questionável. A ideia de que o motivo de um indivíduo ser pobre é, necessariamente, consequência imanente da ação de um outro indivíduo que se favoreceu disto é, no mínimo, de validade questionável.

Partindo desse princípio, poderíamos também dizer que uma pessoa só é feia pela outra ser bonita. Ou que uma só é gorda, pela outra ser magra. Que uma é triste, pela outra ser feliz. Toda essa noção de que os fatores (ou atributos) de um indivíduo estejam externos à ele é, na sua essência, um completo menosprezo às preferências (e consequências naturais) do indivíduo. Mais uma vez, a delegação das responsabilidades fornece uma visão de mundo em que as pessoas não são mais conscientes de suas vidas e vivem, de forma alucinógena, em um lugar de fantasia.
"Dr. Jekyll and Mr. Hyde" (John S. Robertson, 1920).
Fruto de um constructo ideológico arregimentado durante os anos, toda essa noção irrefreável de interferência perante à existência do outro é, profundamente, ligada ao conceito esquizofrênico de igualdade que permeia boa parte dos discursos dos social justice warriors. De raiz um tanto quanto autoritária, tal assertiva é trazida ao debate público a fim de justificar um tipo de expropriação econômica dos indivíduos que teria o objetivo de quitar uma "dívida histórica".

Logo de cara, podemos ver como tal justificativa é um tanto quanto controversa, pois para isso seria necessário destruir toda a liberdade de uma sociedade livre. O jornalista e autor indiano Dinesh D'Souza, em uma palestra na Amherst College, apontou a hipocrisia dessa concepção, mostrando que tentar advogar uma compreensão dessas em um espectro que abranja toda uma sociedade, é simplesmente torpe. Todo tipo de caridade (ou ajuda) aos mais necessitados, se forçada, deixa de perder a sua razão moral e passa a ser, no seu cerne, uma perversão autoritária de comportamento.

O mais curioso nisso tudo é que estes se tornam muito confortáveis em suas posições hipócritas de seres bondosos, mas na prática só o que fazem é proliferar os seus discursos. Como bem conceituou Bastiat, em seu livro A Lei, a espoliação legal tem raízes profundas na falsa filantropia. É muito fácil se advogar por uma "justiça social" paga pelos outros, quanto não se está disposto a fazer algo por si próprio para que o problema seja solucionado. É por isso que, invariavelmente, tais posturas mostram suas verdadeiras faces e como pouco se importam realmente com os seus semelhantes, pois só o que querem mesmo é aparentar um "amor" (totalmente falso)  à humanidade.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Sem Mais Delongas #15: Problemas de gênero.

(as forças caóticas do relativismo na crise de identidade).


O maior erro da análise contemporânea dos indivíduos é, ao meu ver, a insistência em traçar a mesma quase que inteiramente sob à luz da Sociologia. O menosprezo perante a Biologia e a Psicologia, como métodos analíticos de comportamento, é algo simplesmente assustador. É claro que os aspectos sociais são essenciais para o entendimento de um indivíduo, mas se forem colocados como objetos de um plano maior. Pois - há de se lembrar - mesmo tais aspectos podem ser estabelecidos baseados em preferências fisiológicas ou psíquicas. 

Contudo, a "intelectualidade" forja um panorama onde a análise comportamental é mero instrumento de sucessões "impostas" pela sociedade. É - no mínimo - desumano descaracterizar as preferências dos indivíduos como se estas fossem apenas sujeitas ao jugo da sociedade. É de uma arrogância enorme apontar que a forma de agir de um indivíduo, detentor de determinado aspecto, é gerada apenas externamente à ele.

A construção da identidade dos indivíduos, nas suas mais variadas ordens, parte de uma análise que perpassa por diversas disciplinas. Obviamente, isso não resultará em um padrão comportamental, haja vista que o ser humano é dotado, invariavelmente, de enorme complexidade. Contudo, ainda que não existam padrões, é perceptível a natureza de preponderâncias significativas que corroboram tais formas de tratamento.


Não se trata de tornar excludentes os não pertencentes à pluralidade, mas de respeitar a predisposição comportamental dos demais indivíduos. Por isso, é compreensível a especificação de objetos materiais (ou mesmo da linguagem) como detentores de uma natureza característica. É uma noção muito estúpida conceber as leis de mercado como não suscetíveis ao lucro (o que, consequentemente, perpassa pela maioria). Além disso, a Linguística demonstra - com as corroborações das predileções citadas anteriormente - a natureza de tais especificações. 

Dito isto, finalizo: as suas predileções são resultado de um processo característico seu, não compondo uma amplitude magnânima. Contudo, a predominância de determinados componentes justificam tais especificações e auxiliam no funcionamento do entendimento humano. É óbvio que uma identidade não ortodoxa deve ser respeitada e, claro, levada em consideração na produção de bens de consumo. Mas é arrogância demais esperar que a mesma seja privilegiada, a despeito das outras, no que concerne ao campo econômico, haja vista que a disparidade entre as demandas são gritantes.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Sem Mais Delongas #14: O fenômeno "Aquarius".

(ou como o jornalismo se tornou uma piada).


Eu acompanhei, durante os últimos meses, as constantes revoltas de jornalistas e sites "especializados" em cinema com relação a perseguição(?) que o filme brasileiro estaria sofrendo depois dos seus componentes terem protagonizado aquela pataquada no Festival de Cannes. Mesmo quando ainda não havia visto o filme, eu já criei um pé atrás com relação a todo esse rebuliço que a mídia estava criando, haja visto que o clamor que o filme gerou em Cannes não foi lá grande coisa.

Depois de algum tempo de ocorrido o festival (e do impeachment da ex-presidente Dilma já ter sido consumado), a poeira parece ter abaixado um pouco. Porém, eis que surge a lista de representantes nacionais de vários países para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar e a ausência de "Aquarius" na mesma para que, mais uma vez, a mídia retornasse com a ladainha de perseguição ao filme, quase nunca atentando aos aspectos que constituem a obra(?) de Kléber Mendonça Filho.

Já um tanto irascível com relação a toda essa situação, eu resolvi finalmente assistir ao tal "Aquarius". Afinal, o filme realmente poderia ser excelente e as revoltas seriam, ao menos, justificáveis. Contudo, tudo que eu pude ver foram uma sucessão de cenas tediosas e diálogos pueris. Nem mesmo o conceito por trás do filme (que poderia ser interessante, caso fosse bem elaborado) consegue aliviar o enfado de assistir "Aquarius".
"Aquarius" e o "golpe": a maior piada de 2016.
Mas, afinal, qual é a motivação da mídia por trás disso tudo? Simples, perpetuar uma história para o futuro; advogar em função de suas predileções ideológicas. É bastante óbvio que o mito do "jornalismo imparcial" - do qual muitos jornalistas tentam usar como escudo de suas motivações - é uma piada. Não é de agora que a mídia exerce um papel essencial para a propagação de ideais e histórias (muitas vezes mentirosas e/ou distorcidas) para a população, tudo em função de projetos alucinados.

O patrulhamento dos mesmos em defesa de suas inclinações ideológicas e/ou políticas é cada vez mais estridente e apaixonada. É óbvio que é impossível (especialmente em algo de teor opinativo) exprimir algo sem considerar suas visões a respeito do tema, mas dever-se-ia - ao menos - ter algum tipo de bom senso, pois o jornalismo atual parece viver em um mundo de fantasia; um mundo, esse mesmo, concebido por Thomas Morus. 

E é por isso que quando surgem pessoas ou plataformas que naveguem por fora desta corrente, estes mesmos sejam imensamente rechaçados pelo culto que o jornalismo se tornou. Pois, antes de tudo, a função política dos jornais (e de todo cidadão, se levarmos o pensamento até a última consequência) é, a priori, condenatória. Deve-se, sempre, ser cético com relação ao que a classe política, que em nada nos representa, faz. Por isso que, muitas vezes, os maiores jornalistas deste país são justamente aqueles que não passaram por um processo formal. Somos nós - que na banalidade de nossas existências - nos apresentamos como a alternativa confiável de informação.