domingo, 2 de abril de 2017

Dedo de Prosa #13: Fragmentado (2017)

Capa do filme.
"Os afligidos são os mais evoluídos."

Eis aqui, definitivamente, meus respeitos ao que Shyamalan pode representar para o cinema contemporâneo. Eu já havia ressalvado, em "A Visita", uma possível volta por cima na carreira do diretor, mas foi com Fragmentado que o indiano provou sua capacidade como cineasta e produziu seu melhor filme desde "O Sexto Sentido".

É claro que ao se falar em sua filmografia, não se pode deixar de lado as características que tanto o marcaram: a relação de imanência e metafísica que acompanham suas narrativas; os dilemas psicológicos que acometem os personagens ou até mesmo os enquadramentos não-ortodoxos que marcaram sua carreira. Contudo, há uma mudança significativa no tratamento deste longa (e que também esteve presente no seu filme anterior): o cuidado em não se limitar à produção forçada de plot twists.

Fragmentado começa como um simples thriller: um homem, aparentemente traumatizado, rapta três garotas e as prende em um tipo de sótão localizado em um lugar anônimo. Com o desenrolar da trama, são mostradas as nuances que percorrem a trama: o transtorno dissociativo de identidade (TDI), vivido por Kevin (James McAvoy) e os traumas de vida de Casey (Anya Taylor-Joy).

Com o manifesto de algumas das 23 personagens de Kevin - Dennis, um psicopata com TOC (transtorno obsessivo compulsivo), que gosta de ver mulheres nuas dançando pra ele; Barry S, um estilista extrovertido; Hedwig, uma criança ingênua; Patricia, uma maníaca controladora - e a aparição da Dra. Fletcher (psicóloga de Kevin), uma Luz(!) nos abre os olhos: o sofrimento.

Imagine-se em uma jaula, preso; na companhia de outras 22 pessoas, que podem ser outras ou não. Imagine que a sua realidade seja uma simbiose de noções inequívocas de uma realidade decadente, onde uma simples abstração pode significar a ruína de todo um ser. Há um momento em que a fuga desta verdade é simplesmente irrefreável e não há nada a se fazer, a não ser trabalhar um rito catártico. A única alternativa é libertar esta Fera, trajada de ódio e vitalidade. A transmutação de todos os valores em sua excelência!

Sem controle. Não há escapatória para a humanidade. Apenas a experiência de confrontar a realidade, tal como ela é, pode lhe proporcionar uma chance. Pois, antes de tudo, é a dor da existência que nos permite diferenciar os fortes dos covardes. A mesma dor que permite, na individualidade de cada ser, saber se conseguiremos nos exultar, ultrapassando a nós mesmos.

Tudo isso (e muito mais!) é realizado de forma magistral, dado o zelo técnico do diretor e as brilhantes atuações do (para mim, subestimado pela indústria) James McAvoy - que consegue transformar cada detalhe de sua atuação em um ponto-chave para o entendimento de cada personalidade - e da magnífica Anya Taylor-Joy, que provou que sua excelente atuação em "A Bruxa" não foi apenas resultado do acaso.

Shyamalan acerta e mostra - mais uma vez! -  que ainda pode nos proporcionar um filme fantástico, tenso e profundo. A escolha de não forçar a aparição de todas as personalidades de Kevin é - para mim - um grande acerto, pois dá um enfoque maior ao desenvolvimento do enredo. Apesar de alguns escorregões no roteiro, a obra não é comprometida. Grande filme!
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Curiosidade desnecessária: há uma cena em que há um casaco em cima de uma tábua de passar fechada, recostada na parede. Talvez eu esteja ficando louco ou o curso de História já tenha afetado meu cérebro, mas a construção da figura formada por estes objetos me pareceu simbolizar Anúbis (deus dos mortos, no Antigo Egito).

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