domingo, 20 de maio de 2018

Dedo de Prosa #21: Vou rifar meu coração (2012)

Capa do documentário.
Quando tomei conhecimento desta produção, que trabalha o cenário da música "brega" no imaginário brasileiro e as compleições perceptivas com as quais esse nicho musical se relaciona com o Eros, fiquei deveras interessado. Apesar de minha pouca idade, esse gênero musical sempre teve em mim um grande apreciador e, portanto, a oportunidade de associar isto a um de meus interesses mais recorrentes - o "mundo dos afetos" - soou-me como uma possibilidade agradabilíssima. Felizmente eu estava correto.

O documentário, dirigido por Ana Rieper trabalha três pontos principais que considero dignos de nota. São eles, respectivamente: a formação do Eros no imaginário popular, a relação sinestésica presente neste nicho do cancioneiro popular e, por último, as implicações sociais e políticas da rotulação pejorativa presente na conotaçâo "brega".

Deste modo, o documentário estende seu alcance narrativo tanto aos campos poéticos, presentes nas expressões sensoriais que circundam o tema, como nas características imanentes que decorrem consequencialmente das estruturas de poder que agiam (e agem) sobre esse gênero musical.

Sobre a formação do Eros, o documentário realça as particulares perceptivas de pessoas comuns acerca do que constitui o amor, nas suas mais variadas ordens e intensidades. De tal modo que a expressão trágica presente nessas percepções reflitam todo o ardor e a confusão caótica que constitui a vida dos afetos. Sobre isto, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (Vozes, 2017), em seu livro “Agonia do Eros”, demonstra - embora eu não concorde com sua consequência final, mas não tratarei desta aqui - como a massificação do entendimento do Eros enquanto despojamento da relação com o Outro ("atopia of the Other") e a positivização dos prazeres como constitutivo do campo dos afetos, refletem a derrocada do amor no mundo contemporâneo. Ou seja, a posição de entrega e fragilidade que, superadas pelas condições do mundo contemporâneo, representam os estímulos da formação do Eros, é a base constituinte do imaginário popular da época.

Desta forma, como demonstrado no documentário, que a relação desse imaginário com a música "brega" se dá. A realidade presente do campo dos afetos, como entendida à época, era representada simbolicamente nas representações desses tantos artistas. A verdade dos sentimentos expressos nestas músicas acabavam por produzir um sentimento de pertencimento e identificação que, a despeito da distância entre artista e ouvinte, os conectava por meio de tais produções. A própria realidade sócio-econômica de ambos (que trabalharei mais à frente) fazia um recorte de aproximação entre tais círculos sociais, que interagiam entre si.

Dito isto, fica a questão: por que a aferição de música "brega", se tais canções possuíam tanta popularidade e vendiam aos montes? A que interesses essa aferição pejorativa servia? Pegando um gancho no comentário feito pelo Agnaldo Timóteo no documentário: "Eu não sou brega, pois quando eu subo no palco eu sou um monstro. [...] Por que essa música é brega? Só porque ela não é do Chico Buarque?"

As implicações desse simples comentário, porém, são mais profundas do que aparentam. Em seu “Manifesto do Nada na Terra do Nunca”, Lobão (Nova Fronteira, 2013) afirma:

[...] existe uma invariância de estruturas que governam o (des)conhecimento, sancionadas por uma cartilha ideológica, emulando um presente decalcado de um passado cenograficamente glorioso e impossível de ser superado. Na música, a MPB, sigla criada na época dos festivais para designar a produção musical de quem se alinhava ao pensamento de esquerda nos anos 1960 e para excluir os demais (sob todos os pretextos), é o exemplo típico de indução por meio da repetição obssessiva para dar a ideia de que a qualidade e a excelência do nosso cancioneiro, de que os grandes gênios e arautos da liberdade eram um fenômeno exclusivo daquela época e daquela sigla de proveta.
No final do século XIX, o intelectual brasileiro, órfão da monarquia, procurava desesperadamente construir uma nova identidade nacional a partir das condições reais da existência do país: a pobreza. Houve um grande fluxo de pesquisas e obras voltadas para o interior, mas sempre numa abordagem um tanto forçada, afetada. Na verdade, havia um certo incômodo em perseguir uma identidade brasileira tão diferente da realidade em que esses intelectuais bem-nascidos foram formados. E essa procura, a meu ver, jamais teve fim. (LOBÃO, 2013, p. 25-26)

Desta forma que, na entrada do século XX, tantos movimentos de cunho nacionalista surgiram: seja ele o modernismo de 22, o tropicalismo ou, por fim, a MPB. Sob o jugo desse núcleo duro de intelligentsia que foi se formando, com o decorrer do tempo, a sujeição da música "brega" ao coronelato de intelectuais com interesses político-artísticos escusos. A "máfia do dendê" - termo eternizado pelo jornalista Cláudio Tognolli - sedimentou os horizontes dessa influência a ponto de produzir uma estratificação cultural, de tal forma, que artistas que não estivessem presentes neste círculo dificilmente conseguiriam alçar voos maiores para suas carreiras. Sobre isto, Lobão complementa:

O que se pode concluir com esse panorama é que temos arraigados em nossas entranhas vícios de auto-imagem que nos arremessam em nossas entranhas vícios de auto-imagem que nos arremessam ao mesmo lugar. Vivemos num presente contínuo em que os mesmos valores e as mesmas figuras se repetem ao infinito, sem que qualquer alteração relevante possa ser vivenciada.
Essa atitude monomaníaca é uma mentalidade concebida pelo filósofo revolucionário franco-argelino Frantz Fanon: a vocação histórica de uma burguesia nacional seria de "se negar enquanto burguesia, de se negar enquanto instrumento do capital, para se tornar totalmente escrava do capital revolucionário". Com esse discurso de esquerda idiota, fomos vitimados por uma vasta produção de canções dedicadas a traduzir a realidade do povo através do delirante e culpado ponto de vista do intelectual/artista da classe média, no sentido de doar uma verdadeira "consistência" a algo a que o povão não tinha o menor acesso, pelo que não tinha a menor empatia, muito menos interesse: a música de cunho social com letras que deveriam ser... inteligentes.
Daí a grande frase atribuída a Joãosinho Trinta: quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta é de luxo. (LOBÃO, 2013, p. 34)

Ou seja, a condição popular da música "brega" foi, em substância, solapada pelos interesses masturbatórios de uma elite cultural que se jactava das suas produções, intensificando as tensões sócio-políticas que circundavam o seu não-pertencimento aos interesses da massa, visto que o que interessava à tal indústria cultural (alô, Adorno!) era a formação de uma consciência coletiva que favorecesse determinadas predileções abstratas. (Para mais, ler "Esquerda caviar", de Rodrigo Constantino; "O ópio dos intelectuais", de Raymond Aron e " Os intelectuais e a sociedade", de Thomas Sowell).

O documentário "Vou rifar meu coração" - em homenagem a faixa homônima de Lindomar Castilho -, portanto, reflete lindamente o panorama simbólico no qual a música "brega" está inserida. Isto posto, percebe-se como a assimilação das paixões, tais como são - ler "O gozo genuíno" -, por parte deste gênero musical e a erudição com que este trabalha o campo dos afetos é, sobremodo, de uma profundidade exímia. O declínio da poesia (tema que tratarei em ensaios futuros) no mundo contemporâneo adiciona ao campo dos afetos uma superficialidade de tratamento que, sobremaneira, desorienta e empobrece as relações afetivas, de tal forma que o fenômeno das identidades tergiversantes reincidam na proliferação da destruição atroz das compleições simbólicas da vida afetiva. Perde-se a sujeira no amor e a poesia no desejo. O Eros agoniza.

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